Trajano
tinha o reprovável hábito de, todos os dias, religiosamente, após o trabalho,
ir para o botequim tomar umas e outras com os amigos, antes de se dirigir para
o sacrossanto recesso do lar. Não havia dia em que Trajano não aparecesse para
umas cervejas, entrecortadas por um destilado qualquer, apoiadas por uma
sequência gordurosa de tira-gostos que se mostravam na estufa já gasta pelos
anos.
A conversa
corria solta, entre gargalhadas e algumas ideias graves sobre a situação
do país e a escalação do time para a próxima partida do campeonato brasileiro
de futebol.
Depois de
algum tempo chegava a casa, tomava um banho, comia a janta requentada pela
“dona encrenca”, como se referia à esposa, quando estava na roda de amigos de
libações alcoólicas, e ia para a cama dormir o sono dos justos.
Naquele dia,
no entanto, esse segundo ato de sua tragicomédia não ocorreu. No meio de uma
gargalhada portentosa, motivada por piada indecente que o amigo Donato contava,
foi fulminado por um mal súbito, coisa talvez de coração descuidado. Tombou
para trás na cadeira e espalhou o horror ente as mesas do botequim. O táxi do
ponto em frente, chamado ao serviço, apenas levou o cadáver encharcado de
cerveja e steinhaeger à emergência do hospital municipal.
Os amigos
que bebiam com Trajano nomearam Donato como o anjo anunciador do desenlace à
viúva. Donato ainda tentou desvencilhar-se da incumbência, mas não teve
escolha: fora sua piada a causadora da morte do amigo.
Sem conhecer
a mulher do colega de botequim, dirigiu-se ao endereço com a nefasta missão.
Chegou,
tocou a campainha e foi atendido por uma mulher sacudida, cheia de curvas,
ainda jeitosa nos seus pertences, bonita mesmo, como constatou.
- A senhora
é que é a viúva do Trajano? – perguntou com a sutileza do elefante da piada
infame.
-
Infelizmente, não! – disse-lhe a mulher.
E, antes que
ele se desse conta de ter batido em endereço errado, ela completou:
- Aquele
traste não morre nem com reza forte. Aquilo tem uma saúde de ferro. Deve estar
lá no botequim enchendo a cara e jogando conversa fora.
Donato
sentiu naquele momento que aquela era a mulher da sua vida desregrada. Queria
ter um freio e aquela viúva se apresentava à sua frente, falando horrores do
Trajano, com a segurança das mulheres decidas. Justificou-se, então, com ela,
dizendo-lhe que tinha notícia funesta, que seria melhor entrarem porque era da
parte do Trajano, seu amigo de muitos anos. A mulher sentiu nas palavras de
Donato gravidade de enterro e cravo-de-defunto. Convidou-o a entrar em casa,
onde ele lhe explicou todo o ocorrido, desde a piada indecente até a apoplexia
final do Trajano, virando-se de costas na cadeira e estatelando-se no chão sujo
do boteco.
Descaradamente,
Donato reprovou todas as atitudes de Trajano para com a mulher, manifestou o
desejo de apoiá-la naquela hora difícil e arranjou um jeito definitivo de se
instalar em sua vida e sua cama para o resto dos dias. E não quis mais saber de
botequim, com suas cervejas e steinhaeger, de conversas fiadas
sobre times de futebol e iniciativas governamentais, que poderiam varar a
noite, sem que isso lhe trouxesse qualquer coisa melhor que o cheiro gostoso de
um corpo feminino.
Ninguém
mandou o Trajano abotoar o paletó!
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Imagem em viajeaqui.abril.com.br. |
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