26 de março de 2014

CARRO DE BOIS


Um dia ainda vou tocar bois na estrada. Certamente atrelados a um carro, eu com o garruchão nas mãos, candiando os bichos. Mas terei cuidado em não espicaçá-los com o aguilhão, para não feri-los, apenas batendo com a vara na canga a que vão atrelados, chamando-os com intimidade pelo nome de batismo:
- Vem, Corisco! Vem, Jeitoso!
E o barulhinho das argolas presas à ponteira da vara a tilintarem, hipnotizando os animais que seguirão dóceis, puxando o carro carregado de milho recém-colhido, levado à máquina do seu Lulu, para virar o fubá nosso de cada dia. Ou – o carro sem a mesa – arrastando toras presas ao cocão, as quais deixam um sulco no chão de terra como um rastro. Ou, quem sabe ainda, transportando a mudança pobre do colono que troca de patrão e precisa rebocar seus trecos para a nova casa de sopapo à beira do valão Liberdade, aí o carro com a mesa, os fueiros e a esteira que protege as coisas miúdas de caírem pelo caminho. Ou, ainda mais, o carro abarrotado de cana de açúcar a ser descarregada no engenho do seu Pequetito, na Fazenda do Jacó, onde se transformará em melado, rapadura e açúcar batido.
Tenho essas imagens ainda perdidas no escaninho da memória a voltarem, vez em quando, à soleira do meu dia a dia em molde de saudade caipira. Eu fui um menino feliz do interior.
Claro que nunca candiarei bois. Nem nesta, nem em outra possível encarnação, quando eles ainda não estarão libertos desse duro trabalho e continuarão a se prestar a comida dos seres humanos e de mais alguns outros colegas carnívoros, hospedados em zoológicos confortáveis através do planeta.
Mas a imagem do carro de bois sempre retorna. Sou até capaz de ouvir o som dolente do eixo azeitado, a preencher os espaços vazios nos céus da minha terra natal. Lá longe vem o carreiro chamando os bois, em meio a este canto mecânico, quase narcótico, num movimento andante ininterrupto, tal moto perpétuo. Quanto mais pesado o carro, mais o canto se fazia lamentoso, dando, por vezes, às pessoas a sensação de um sofrimento profundo, sem origem ou motivação, apenas talvez lembrando a todos nós a dor de estar no mundo. E os bois seguiam plácidos, ruminantemente conformados, puxando o peso das nossas e das suas vidas estrada afora.
E cada carreiro procurava tirar o som mais bonito do seu carro. Isto era motivo de orgulho profissional. É provável até que, entre eles, houvesse uma disputa tácita, não declarada, uma espécie de guerra fria, para se produzir o canto mais melódico. Por vezes, como em dueto, carros passavam cantando, cada um, seu canto de modulação particular, pelas estradas perdidas da minha vila.
Por isso é que, ao me assaltar esta saudade, me vem certa tristeza em saber que meus netos nunca terão impressas tais memórias. Como, aliás, provavelmente seus próprios pais não as tenham, embora frequentassem o interior em suas férias escolares da infância.
Infelizmente esta é uma experiência que não se passa aos seus, não se transfere por herança ou doação em vida. Fica ela restrita àquilo que temos de mais escondido dentro da gente, sem que possa ser compartilhada, como está tão em moda nestes tempos virtuais.
Ainda agora estou ouvindo o grito do carreiro se destacar do canto triste do carro de bois, a chamar seus ajudantes na lida da vida:
- Vem, Jeitoso! Vem, Corisco!
                                                                Imagem colhida em  Portal Fonte.



(Em homenagem aos antigos carreiros de Carabuçu, sobretudo a seu Bastião Carreiro, pai do meu amigo Didi, ele também carreiro na infância.)

5 comentários:

  1. Lindo texto! Enquanto lia, senti saudade de momentos que quase vivi. Mas acordo cantando, dia sim, outro também, uma linda canção que ouvia em minha adolescência, e que carrego vida adentro, como um mantra: "Que vontade eu tenho de sair, num carro de boi, ir por aí...Estrada de terra que só me leva, só me leva..." Boa noite, escrevinhador! Cynthia

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Cynthia! Obrigado pela leitura e pelas palavras.Sinta-se à vontade no blog.

      Excluir
  2. O que é extraordinário é que mesmo dizendo que não, você nos lega, a partir desta geografia da memória, um pedaço significativo da vida.

    ResponderExcluir
  3. Lindo, Professor.Poesia pura. Um texto como este, capaz de emocionar até um estranho ao ambiente, praticamente desconhecendo tudo relacionado, e ainda assim sentir os olhos experientes da vida umedecidos por um sentimento de puro regozijo, é,sem dúvida alguma, merecedor dos maiores elogios; os quais, lamentavelmente, pela minha pobreza de expressão, sinto-me incapacitado de formula-los. Ainda bem que existe aquela palavra mágica para "quebrar o meu galho" : PARABÉNS.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado pela leitura e por suas palavras! Infelizmente aqui para mim não apareceu seu nome. Apenas: unknown.

      Excluir