9 de janeiro de 2014

AMARCORD


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Tenho cravada em minha memória a cena sedutora de um filme mexicano em que a belíssima atriz cubana María Antonieta Pons, dentro de um vagão de trem, deixava que o mocinho (ou seria o bandido?) lhe beijasse o lindo tornozelo torneado, apenas insinuado com o suave levantar de sua saia comprida. Não sei quem era o canalha que lhe beijava o tornozelo, nem o título do filme, nem o nome do diretor, assim como não me recordo de nenhum fotograma anterior ou posterior a esse. Mas esse ainda está incrustado num escaninho qualquer lá dentro de mim. Imaginem, então, o que a cena causou em minha cabeça! Devia ter lá meus doze/treze anos, quando vi o filme. E tive o cuidado de, após a sessão, saber o nome daquela bela atriz e seu tornozelo maravilhoso: María Antonieta Pons! Aliás, o cinema mexicano da época, através da Pelmex, era pródigo em belas mulheres. Só para citar algumas: Libertad Lamarque, Dolores Del Río, Ninón Sevilla, María Felix. E desconfio de que continue assim até hoje…

María Antonieta Pons (em cinemexicano.mty.itesm.mx). 

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De quando em vez, meu saudoso avô Chico Albino, que à época morava em Duque de Caxias, ia visitar os parentes – dentre eles meu pai, seu filho – que deixara na pequena vila de Carabuçu. Eu o admirava profundamente. Achava-o um homem elegante, porte nobre, sempre vestido com correção e dono de uma dicção limpa, clara. Não tenho lembranças de que levasse presentes. Nesse tempo, não era comum, pelo menos na minha terra, que se dessem presentes. Mas sua presença por lá era motivo de grande satisfação minha. Numa dessas visitas, estava conversando com os amigos na venda de meu pai, contando lá as histórias de Duque de Caxias, quando se referiu a certo cidadão, personagem do que dizia, com a palavra cafajeste:

- Fulano era um verdadeiro cafajeste!

Na hora, achei a palavra muito bonita, muito sonora, e gostei de ouvi-la da boca de meu avô. Como já era um menino esperto, perguntei-lhe o que significava cafajeste. Tive, então, a maior decepção com o sentido. Como podia uma palavra tão sonora, tão bonita, significar aquilo que me dizia? Comecei, assim, a perceber que nem sempre os sons correspondiam aos sentidos.

Quando fui para a faculdade, tive confirmada essa percepção, ao saber do lamento do grande poeta francês Guillaume Apollinaire, autor de Calligrammes, com a língua francesa, que tem a palavra jour (pronunciada /jur/), de sonoridade fechada, escura, para o que em português é dia, de pronúncia aberta, clara. Dizia ele da necessidade poética, em francês, de adjetivar a palavra para carrear, para seu sentido de claridade, também a claridade da pronúncia, que há na palavra portuguesa. Assim propunha, por exemplo, clair jour (pronúncia /klér jur/) – dia claro – em que o adjetivo de som aberto como que clareia o sentido de jour.

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Lá nos idos de 1950, meu pai soube, por um dos fregueses de sua venda, que certo conhecido, durante uma partida de futebol de várzea das roças no entorno da vila, tinha sido esfaqueado, por motivo de discussão boba, desmotivada. Virou-se, então, para o que trazia a notícia e exclamou:

- Xi! Coitado! Deu com os costados na cerca!

Ao ouvir isso, quis saber do meu pai se o homem se ferira na cerca, normalmente feita de arame farpado. Meu pai deu um sorriso amarelo e me disse:

- Não, morreu mesmo! Dar com os costados na cerca quer dizer morrer.

Dessa vez, percebi também que as palavras nem sempre querem dizer o que dizem e podem nos meter em enrascada. Ê vida difícil! É o que talvez justifique aquele camarada que se explicou à autoridade, dizendo que chamara o outro de filho da puta no bom sentido.

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Bom sentido que não existia há algumas décadas. E foi o que motivou um tio-avô a atirar num desafeto, justamente por chamá-lo de filho da puta. Na época, era a maior ofensa que se fazia a um homem, porque atingia diretamente sua mãe. Era um agravo na raiz da nascença, como se dizia, que manchava toda a descendência, ainda que por tabela. Tão logo foi xingado, meu tio agrediu o ofensor. A turma do deixa-disso fez a separação dos briguentos. Após a rixa, correu a notícia de que o outro estava andando armado, para dar fim a meu tio, que também pôs o revólver na cinta. Não era, então, estranho as pessoas andarem armadas. Os de menor posse muniam-se de facas e peixeiras; os de maior, de garruchas e revólveres. Mesmo que não se portassem as armas, elas estavam dentro das casas. Por isso ocorreu que, estando meu tio num bar, em conversa com amigos, de costas para a porta, ao ouvir o chamamento do desafeto – não se matava um homem pelas costas –, ele já se virou atirando. O homem, alvejado, foi levado para o hospital de Bom Jesus, vindo a falecer, tempos depois, em consequência de complicações pelo tiro que levou.

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Os mais velhos contam uma história interessante, ocorrida em Carabuçu. Durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, foi instituída uma força policial volante, que vasculhava o interior para desarmar as pessoas. Nessa época, havia por todo lado muitos jagunços, muitos grupos armados, e os confrontos eram corriqueiros*. Para o norte do antigo estado do Rio de Janeiro – a Velha Província que teimava em sobreviver –, foi mandada a volante comandada pelo tenente Coaracy, homem de estatura baixa, mas tido como enquizilado, carne de pescoço, temido por todos.

Vem a volante entrando na vila, tenente Coaracy à frente, montado em sua garbosa mula alta. Ele, de pequetito, virava um homenzarrão sobre a besta. Na porta do botequim, estava um homem que, ao ver o grupamento, julgou por bem não se afastar, para não levantar qualquer tipo de suspeita, o que, certamente, o levaria a passar maus momentos. Tenente Coaracy estaca a montaria diante do homem, que já imagina o pior. Com sua voz firme e autoritária, pergunta ao homem:

- Caboclo, você fuma?

Tremendo de medo, o pobre coitado não teve como mentir e disse, com a voz já por um fiapo:

- Fumo, sim, senhor! Mas, se o senhor quiser, eu largo o vício.

- Não é nada disso, caboclo! Me arranja um cigarro, que o meu acabou!
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(* Se quiserem conhecer mais detalhes desse período da história brasileira, indico o excepcional romance de Mário Palmério Chapadão do bugre, que também serviu de base para minissérie homônima, levada ao ar pela Rede Bandeirantes, no ano de 1988, com direção de Valter Avancini e Jardel Mello.)

2 comentários:

  1. As suas histórias do Brasil de antigamente e a sua linguagem têm um encanto muito especial para mim. O seu modo de escrita transporta-me para os locais e para as personagens.
    De Paris, um beijo.

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