13 de janeiro de 2014

NEM TODOS OS OLHOS DE ARDÓSIA FULMINAM UMA MULHER


Tinha por profissão o concubinato remunerado com casa bem montada, compra de mercado e roupa de butique, contas de luz, gás e telefone pagas no fim do mês.

Em troca, oferecia cheiros e muxoxos, rom-rons de gata siamesa, siricoticos e balacobacos em lençóis de cetim, à luz de um abajur lilás. Depois, talvez, quem sabe, acaso, se bem disposta, licorzinho de amarula, cafezinho de cafeteira elétrica e dois dedinhos de prosa, com a boca carmim espalhando luz. O encantado a seus pés, numa submissão quase total, não fosse a obrigação de voltar para casa, antes de dar a meia-noite.

Não havia candidato que lhe escapasse aos encantos, sobretudo os que se escondiam sob a lingerie encarnada, debruada de grega de seda, o contorno da coxa a insinuar-se em direção ao montículo de Vênus. Uma perdição letal!

Quando aquele tiozão não aguentava o repuxo, seduzia outro mais apto a assumi-la, que ela não era mulher de esquentar cadeira, de pegar no batente, de marcar ponto, de ouvir bronca de chefe.
Também queria saldo em conta bancária, para que pudesse esfregar nas caras de Cotinhas e Matildes, as línguas soltas a babar inveja, os bóbis frouxos nos cabelos, olhos sobre o portão de ferro das casas de vila.

Só chegava a casa e dela saía aboletada em táxi de ar condicionado, em bom estado de conservação, pintura sem arranhão e banho recente no lava a jato, cheiro de jasmim no ambiente. Isso, quando o tiozão não vinha em seu carro reluzente, com estardalhaço, pegá-la e deixá-la na entrada da vila, as fofoqueiras de plantão olhando pelos basculantes.

Na ida e na volta, deixava um rastro de perfume importado de causar inveja e marcar território.
Todo domingo, ligava para a mãe viúva que ficara no interior, para dar-lhe notícias e dizer que tinha posto em sua conta um dinheirinho para as despesas, filha boníssima que era. A mãe sabia da missa a metade; a outra, nem o padre! E fingia acreditar que a filha tinha um bom emprego na cidade grande, o que lhe permitia essa benevolência.

Até que experimentou uma paixão fulminante pelo rapaz do banco, onde fora sacar um cheque generoso do tiozão. Os olhos dos dois se cruzaram num momento de fragilidade, de distração talvez. E quando dois olhos de ardósia, como os de Chico, fulminam uma criatura distraída, é morte quase certa. Ou paixão avassaladora. Deles fugir, quem há-de?

E como deixar o bem-bom da vida com o tiozão, para se acomodar ao salário do bancário bonito, que nem gerente era? E como afogar em bacia rasa uma paixão de catarata? Ó, dor! Ó, destino cruel!

Pesados e medidos os prós e os contras, sem vacilar, exigiu que, doravante, o tiozão lhe desse cheque de outro banco, pois, naquele, tinha sido ameaçada de morte pelos raios fulminantes de uns olhos de ardósia.


Capa do cd de Chico Buarque, com suas várias caras, mas os mesmos olhos de ardósia.

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