10 de setembro de 2013

RORÁIMA OU RORÃIMA?



Publiquei em Gritos&Bochichos, em 23/4/2010, o texto abaixo, na rubrica Essa nossa rica língua.

Como nada mudou, repito-o aqui, na esperança de que mais alguns leitores conheçam a verdade dos fatos sobre a pronúncia que a Rede Globo teima em imprimir à palavra Roraima, nome de um dos nossos estados federativos.

De antemão, devo alertar os leitores de que tenho certa implicância com algumas pronúncias que o William Bonner faz de determinadas palavras. Mas o que expresso aqui não tem nada de pessoal - e nem haveria, pois ele não está nem aí para este que vos escreve. Mas é que há certas coisas que me incomodam muito. Então, é melhor escrever.
 

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Temos ouvido  com frequência, todas as vezes que locutores e jornalistas da Rede Globo de Televisão, individualizados aqui pelo William Bonner, se referem ao estado do Norte brasileiro, fazerem a pronúncia aberta do /a/ tônico da palavra Roraima: /Roráima/.

Tal pronúncia é estranha ao linguajar no Sudeste, de onde partem as emissões da Rede. Também, pelo que sei, os jornalistas e locutores não são nativos daquele Estado, o que também não se justificaria. 

Incomodado com tal pronúncia, enviei mensagens eletrônicas para Bonner e para Evaristo Costa, do Jornal Hoje, sem que nunca houvesse mudança na pronúncia. Pretensão minha, não é mesmo? Mas lhes explico.

Não importa como, em Roraima, os roraimenses pronunciem quaisquer palavras da língua. Cada região irá pronunciá-las com o sotaque que lhe é característico. Ora, na pronúncia padrão brasileira, como ocorre em nossa região e em várias outras, é traço comum como que nasalar, com o fechamento do timbre, as vogais ou ditongos, após os quais apareçam as consoantes nasais /m/,  /n/ e /ŋ/. Por exemplo, não dizemos /andáime/, mas /andãime/, assim como fechamos o /a/ tônico de cama, cana, cânhamo, estamos, ficamos. Em Portugal, a pronúncia de todos esses /a/ é aberta. O mesmo ocorre com a vogal /o/: somos, sono, sonho, Antônio. Eis aí um traço distintivo entre os dois sotaques: em Portugal o /a/ e o /o/ são abertos, no Brasil são nasalados, fechados.

Imaginem se é possível a um falante de determinada modalidade regional saber como a população local pronuncia os nomes dos lugares em que vivem?

Há algum tempo, vi no sítio eletrônico do Millôr Fernandes a ponderação de uma teleleitora, como ele costuma dizer, sobre o assunto. Lá ela se expressa da seguinte forma: “Como nativa, devo afirmar que a pronúncia correta seria realmente Roráima; não fique enjúriado (sic) com o Bonner. O termo Roraima, assim como Pacaraima, Sorocaima e Maracaibo são palavras de origem caribe. O termo Roraima denomina um estado no Brasil e outro na Venezuela e, em ambos locais (sic) se pronuncia Roráima, e não Rorãima, como as pessoas falam na sua casa. William Bonner e a Rede Globo nada mais fizeram do que a gentileza de adequarem a pronúncia nasalada à pronúncia de que se valem os falantes da região. Manda a boa regra que se deve adotar o modo como os nativos falam palavras típicas do seu local”.

Também não importa a origem da palavra para pronunciá-la em nossa língua. Para esse caso, seja exemplo a palavra fogo (substantivo), que  em latim tinha o primeiro /o/ aberto (breve): fŏcu. Aproveitando a oportunidade, também não se justifica a pronúncia em /o/ fechado da palavra ioga, como querem os praticantes da filosofia, sob a alegação de que em sânscrito, de onde provém a palavra, o /o/ é fechado. Comparem-se: joga, toga, roga, voga, sogra, logra.

À luz da Linguística, não há boa regra que nos obrigue a pronunciar como os nativos de outras regiões. Seríamos, então, obrigados a pronunciar /Ricifi/, /Parri/, /London/, para Recife, Paris e Londres, já que é assim que as populações locais pronunciam os nomes de suas cidades. É possível saber como os locais pronunciam: København (Copenhague), 北京; (Pequim), Улаанбааτар (Ulan-Bator) ou Warszawa (Varsóvia)?  Foi esse, inclusive, o teor da intervenção que enderecei ao Millôr na época.

Além do mais, não há em Linguística (ciência) a noção de deferência linguística. Tentar falar como o outro soa mais como brincadeira.

Bonner não alterará sua pronúncia, tenho absoluta certeza. Assim como não alterou a de sem-terra, que ele faz como se sem fosse meramente uma sílaba da palavra composta e não um vocábulo preexistente na língua. A pronúncia da primeira sílaba da palavra composta formada por sem + terra é /seyn/ com uma semivogal /y/ e não /sen/, sem a semivogal, como se faz em centena, sentido. E olhem que para isso também já enviei várias mensagens, todas infrutíferas.

Mas a vida tem dessas coisas: uns, moinhos de vento; outros, Dom Quixote!

 

Primeira gramática da língua portuguesa, de Fernão d'Oliveira (séc. XVI).
 
 
PS: Vejam o comentário do amigo Alfredo Moreirinhas, logo abaixo, para atentar para as observações que faz acerca da pronúncia lusitana. Obrigado, Moreirinhas!
 


4 comentários:

  1. Muito boa sua aula...aqui é casa, tenho uma mistura de sotaques, sou paulistana, marido cearense, filhos cearenses, criados no RN...de vez em quando, misturamos tudo, mas tem gente que reclama, procurando uma identidade de local: "ué, mas você não é paulista?" A resposta é confusa também. Abraço do Pedra.

    www.pedradosertao.blogspot.com.br

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    1. Obrigado, Pedra do Sertão. Há realmente uma riqueza de sotaques em nossa língua. Cada um fica com o seu, certo?

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  2. Amigo Saint-Clair,
    Antes de mais, parabéns pela lição e obrigado pelo seu cuidado na preservação da língua portuguesa.
    Há, no entanto, uma imprecisão em relação à maneira como o Saint-Clair diz que em Portugal se prenuncia o "O" e o "A" nas palavras: cama, cana, cânhamo, estamos, ficamos, também não abrimos o "a", com a excepção da palavra: "ficamos" que se for no presente é fechado e se for passado é "ficámos". No Brasil não fazem distinção e em Portugal sim, embora hoje já haja muita gente a pronunciar como no Brasil. Também nas palavras: somos, sono, sonho, nós não abrimos o "o". Nas palavras: "António" e "tónica" por exemplo, abrimos o "o" e até escrevemos com acento agudo.
    Aquele abraço!

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