1 de dezembro de 2012

UNS GOSTAM DOS OLHOS; OUTROS, DA REMELA!


O problema todo foi Timóteo ter chegado cedo à casa da noiva, antes do horário combinado e sem avisar. Encontrou-a ainda em roupas de dormir, sem maquiagem, os cabelos desgrenhados, apeada de toda minuciosa produção com que se apresentava socialmente. Parecia uma assombração da Quaresma.
Nem na figueira mal-assombrada da curva da estrada da Fazenda da Liberdade, logo depois do grupo escolar, houve aparição mais esquisita na vila. Por isso ele começou a pensar seriamente em desembarcar do compromisso assumido com seu Dorival e dona Dozinha, pais de Carminha, a vítima de seus planos matrimoniais.

Carminha tinha uma irmã mais nova que ela três anos e toda apetrechada de beleza: Felícia. As duas juntas pareciam a prova contundente de que a natureza trata seus filhos, às vezes, como malvada madrasta: uma, feiosa de dar dó; a outra, de uma formosura brejeira de doer nos olhos.
Quando viu, pela primeira vez, as duas juntas, Timóteo imaginou, então que a vítima talvez fosse ele, como chegou a cogitar naquele malparado instante. Foi susto demais para coração tão desavisado. Porém havia força maior a nortear suas intenções.

Timóteo, na verdade, não era flor que se cheirasse. Tinha contra si todas as fundadas acusações que comumente se fazem aos mandriões, aos poltrões, aos dissipadores de pecúnia, aos desocupados. Vivia entre víspora e cisprandi, entre jogo de vida na sinuca do bar do Roldão e as apostas no jogo do bicho do seu César. Ganhava uma ninharia aqui, outra ali e ia tocando a vida nesse ramerrão.
Porém Carminha era de um encalhe só. A pobre coitada já nascera feia, mal ajambrada. E, logo no berço, pai e mãe viram que seria difícil a beleza, essa joia perseguida por todas as pessoas e engastada em Felícia como um brilhante, se afeiçoar a ela. Isto porque a beleza passou batida por Carminha de não dar as caras desde o berço, bem como na fase de menininha miúda. Quando ela chegou à fase da troca de dentes, a figura de Carminha fazia criança pequena chorar.

Quando botou corpo, cresceram-lhe os seios e arredondaram-lhe as formas, os pais tomaram a providência de enchê-la de cremes e bases, de lápis daqui e dacolá, em riscos nos olhos, batom nos beiços e cuidados nos cabelos de palha, para que não parecesse espantalho para moço desavisado.
Era preciso preparar Carminha para algum descuidado pretendente. Depois dos papéis assinados, o marido é que se virasse. E tinham a esperança de que os possíveis futuros netos desagravassem, um pouco que fosse, esse desapreço da filha pela beleza.

Era uma esperança legítima daqueles pais desconsolados, que circulavam com ela por todos os espaços sociais em que pudesse ocorrer a oportunidade de laçar um genro.
Por isso é que faziam questão de sempre estar de olho em possíveis pretendentes, aos quais prometiam alqueires de terra e plantações de café, além de outras benfeitorias que iriam deixar para o abençoado genro.

Dona Dozinha, não por acaso, era devota de primeira linha de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a quem endereçava contundentes novenas e outras tantas promessas, além das doações costumeiras à capela da vila, com orientações para que o altar em que se aninhava a imagem da santa fosse o mais vistoso de todos, até mesmo do que o do Filho pendurado na cruz, “que Deus me perdoe por isso”, como sempre terminava suas orações.
Timóteo, contudo, foi mais ou menos encaminhado para ela, quando disputava uma partida de sinuca com Dorival, que chegou cheio de insinuações. E não teve como escapar de concordar com ele sobre certa esconsa beleza que se poderia entrever na cor dos olhos de Carminha, talvez um azul esverdeado, um verde azulado, herança de uns genes portugueses perdidos de muito antigamente.

Poltrão como era, Timóteo pensou que poderia suportar aquele tanto de feiura, no amparo da beleza de Felícia, que haveria de estar sempre próxima da irmã. E dirigiu-se, como boi para o matadouro, para o altar enfeitado para as núpcias, numa tarde fagueira de um sábado perfumado de primavera.
A igreja, abarrotada de gente, alguns com o único interesse em testemunhar o desencalhe de Carminha, coisa tida por inacreditável, outros com o sincero voto de que aquele desassombrado homem pudesse dar um pouco de felicidade à moça.

Num dos últimos bancos da igreja, sentou-se o amigo que viera de Campos dos Goytacazes para testemunhar os votos dos noivos. E, depois de ver a noiva chegar ao adro da igreja, não se conteve em saber de Timóteo por que, diabos, havendo duas irmãs – uma bela e outra feia que só aquela –, ele justamente optou pela feia.
Timóteo, até para se consolar e não deixar entrever seus interesses mais mesquinhos pelo dote da Carminha, disse ao amigo:

- É que uns gostam dos olhos, amigo; outros, da remela!
E seguiu resignado pela nau da capela de Santo Antônio de Liberdade, onde daria um fim àquela vida de incertezas e periclitâncias, seguido logo após por Carminha, em sua triunfante marcha para o desencalhe derradeiro.
Imagem em perfeitocasamento.com.br.

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