25 de junho de 2016

ANUNCIAÇÃO


Há velórios e velórios. Assim como há mortos e mortos.

Há aqueles velórios empertigados de mortos ilustres, merecedores de toda consideração, discursos, avaliações de sua vida laboriosa dedicada à causa da comunidade.

Há aqueles outros velórios, de gente mais morrível, mais simples, cheia de afeto dos amigos e parentes. Nesses não há discursos. Há causos, piadas, lembranças de acontecimentos engraçados em que o defunto esteve envolvido. Forma, talvez, de querer segurar sua memória, marcar a passagem para o desconhecido com as boas referências de quem nessa vida se limitou a viver, esquecido de que se multiplicou aos olhos de todos. Meras recomendações dos que ficam para aquele que vai atravessar o rio da morte, sem o dinheiro para o barqueiro. Nesses velórios, a viúva chora inconsolável, enquanto as amigas coam café, fervem leite, passam a bandeja de broa e rosca, e os homens, no alpendre da casa, na varanda, no terreiro, falam baixo, dão gargalhadas, raspam a garganta de um pigarro comprido. A noite alta não pega ninguém no desaviso. Por isso, os mais chegados ficam ou se revezam, para não deixar que as velas se apaguem e o finado fique sem luz. No finzinho da madrugada, a luz já embabadando os morros ao longe, costuma passar um prato fumegante de mingau de fubá ou uma boa caneca de café com leite, para matar a ressaca da noite indormida. E o finado lá, todo feliz, porque sabe que, embora não tenha levado absolutamente nada para pagar ao barqueiro do rio da morte, percorre o caminho inverso da anunciação do Salvador: a sua carne se fez verbo e continuou habitando entre nós.


Caronte (imagem em espiraisdotempo.blogspot.com).


2 comentários:

  1. É assim mesmo... em especial nas cidades pequenas (como a que eu nasci)... E o pobre Caronte, a aguardar uma moeda... Muito bem escrito. Parabéns, Saint-Clair. Grande abraço.

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