19 de agosto de 2015

SÔ JUQUITA


Sô Juquita era a única pessoa que eu conhecia que tirava a dentadura dupla toda vez que ia mastigar carne. Dizia que era mais “dequado”, que a dentadura “tava froxa” e “intrapaiava a mordeção da carne”.
Sô Juquita era casado com Sá Vicenza, uma italiana gorda de muitos quilos, aqui chegada quando menina, com andar de pato, pernas pesadas de certas varizes, e devoradora do biscoito engano que minha avó fazia. Sempre aparecia na casa dela, quando subia o cheiro do assado dos biscoitos, a invadir sua casa fronteira à da minha avó. Nessas ocasiões, dizia que sofria demais com uma queimação na boca do estômago, que nem bicarbonato dava jeito, mas que não podia resistir ao sabor daqueles biscoitos.
Mas Sô Juquita nunca ia. Mantinha uma distância respeitosa da casa de seu compadre, a que só comparecia quando convidado. E tinha lá também suas preferências. Como ficar no bar do Dadá, sapeando o jogo de sinuca, sentado a uma mesa encostada na parede, próxima ao banheiro, sempre enfeitada com um garrafa de cerveja preta e seu copo nunca cheio. Assim que completava o nível, sorvia um gole, limpava a espuma que subia pelo beiço com o dorso da mão e lançava sua opinião sobre a próxima tacada de um dos contendores. Às vezes, um amigo chegava para dividir a mesa, a cerveja e o fazer nada de Sô Juquita. E eram muitas conversas sem rumo e sem baliza, que falavam de um tudo dessa vida, desde a pescaria de lambari, até o último discurso do Doutor Getúlio, já morto e enterrado de alguns anos. Sô Juquita era getulista desde os tempos da carteira de trabalho, embora ele mesmo nunca tenha tido uma. Sua lida sempre fora com as coisas da roça, das plantações, da criação de bichos miúdos, que, na época certa, vendia para os conhecidos e para o comércio de aves, ovos e carne da vila.
Agora, depois de muitos anos vergado no trabalho duro do campo, podia desfrutar de uma pequena aposentadoria e da poupança que fizera, que lhe rendia magros cariminguás a juro com o dono do armazém em Bom Jesus. Tudo registrado, passado em nota promissória assinada, com avalista e carimbo, que Sô Juquita não era bobo de soltar seu dinheirinho assim desembestado nesse mundéu de Deus, sem as garantias da lei.
E como gostava daquela vidazinha simplória que levava na vila. Não sonhava viagens, nem rios de dinheiro; não pedia sol que não suportasse, nem chuva que desbastasse barrancos; não excomungava as dores pelo corpo, nem cantava os feitos da juventude. Era um homem conformado com a pequena sorte de ainda estar vivendo, apesar dos pesares. A fieira de filhos que fizera se foi mundo afora cuidar de suas vidas, continuar a linhagem dele, de que tinha muito orgulho. E era só este o seu grande orgulho. Gavava a netaiada, como dizia, que seus meninos tinham produzido e que continuariam com seu sobrenome por algumas gerações ainda. Como ele mesmo fizera com a carga que recebera dos pais e dos avós. E sempre repetia o provérbio: Quem não gava os seus não merece o nome.
E, por isso, gostava de ficar ali no bar do Dadá, sem tempo difícil, olhando o jogo de sinuca, tomando sua cervejinha preta, dividindo-a, por vezes, com um e outro amigo, dando pitacos no jogo e nos enovelados da vida, no seu parecer, muito intrincada para uma cabeça só entender.
Quando o amigo pedia ao Dadá um bife acebolado para acompanhar a bebida, era a hora de Sô Juquita meter a mão na boca e desalojar as duas cremalheiras. Tirava do bolso de trás da calça o lenço que sempre trazia limpo para essa ocasião, embrulhava as ferramentas nele e deixava o pacotinho encostado à parede, perto da garrafa. Ia começar a roer a carne com suas gengivas nuas. E não havia quem não reparasse nesse hábito esquisito. Passava um bom tempo mastigando o bolo de carne, que parecia crescer dentro da boca, mas que não jogava fora. Depois de um tempo, engolia aquele bolo mascado, sorvia mais um gole de cerveja, passava o dorso da mão sobre a boca e dizia que a bola sete estava cai, não cai, pedindo para morrer.
Eu era menino ainda e gostava de ver aquilo. Achava engraçado. Justamente tirar os dentes para mastigar carne. Na minha cabeça, era algo meio incompreensível. Mas Sô Juquita tinha lá sua experiência e devia saber muito bem o que fazia.
Não bateu um dezembro quente e chuvoso no calendário, e Sô Juquita foi tirar um cochilo depois do ajantarado de domingo. Se esqueceu de desalojar os apetrechos da boca e acabou por engolir a peça superior, que ficou engastalhada na garganta.
Sá Vicenza, quando voltou da missa das dezesseis horas, encontrou o velho inerte, todo roxo, revirado na cama desarrumada.
A dentadura frouxa fora o carrasco de Sô Juquita. 

Imagem em legal.adv.br.

4 comentários:

  1. Com muita piada, mas com um final trágico! Adoro tua maneira de escrever.

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    1. Obrigado, amigo! Fico feliz com a sua passagem aqui no blog. Abraços.

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  2. Vai ver sonhou saboreando um bife... belo causo, Saint-Clair.

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