Sô
Juquita era a única pessoa que eu conhecia que tirava a dentadura dupla toda
vez que ia mastigar carne. Dizia que era mais “dequado”, que a dentadura “tava
froxa” e “intrapaiava a mordeção da carne”.
Sô
Juquita era casado com Sá Vicenza, uma italiana gorda de muitos quilos, aqui
chegada quando menina, com andar de pato, pernas pesadas de certas varizes, e
devoradora do biscoito engano que minha avó fazia. Sempre aparecia na casa
dela, quando subia o cheiro do assado dos biscoitos, a invadir sua casa
fronteira à da minha avó. Nessas ocasiões, dizia que sofria demais com uma
queimação na boca do estômago, que nem bicarbonato dava jeito, mas que não
podia resistir ao sabor daqueles biscoitos.
Mas
Sô Juquita nunca ia. Mantinha uma distância respeitosa da casa de seu compadre,
a que só comparecia quando convidado. E tinha lá também suas preferências. Como
ficar no bar do Dadá, sapeando o jogo de sinuca, sentado a uma mesa encostada
na parede, próxima ao banheiro, sempre enfeitada com um garrafa de cerveja
preta e seu copo nunca cheio. Assim que completava o nível, sorvia um gole,
limpava a espuma que subia pelo beiço com o dorso da mão e lançava sua opinião
sobre a próxima tacada de um dos contendores. Às vezes, um amigo chegava para
dividir a mesa, a cerveja e o fazer nada de Sô Juquita. E eram muitas conversas
sem rumo e sem baliza, que falavam de um tudo dessa vida, desde a pescaria de
lambari, até o último discurso do Doutor Getúlio, já morto e enterrado de
alguns anos. Sô Juquita era getulista desde os tempos da carteira de trabalho,
embora ele mesmo nunca tenha tido uma. Sua lida sempre fora com as coisas da
roça, das plantações, da criação de bichos miúdos, que, na época certa, vendia
para os conhecidos e para o comércio de aves, ovos e carne da vila.
Agora,
depois de muitos anos vergado no trabalho duro do campo, podia desfrutar de uma
pequena aposentadoria e da poupança que fizera, que lhe rendia magros
cariminguás a juro com o dono do armazém em Bom Jesus. Tudo registrado, passado
em nota promissória assinada, com avalista e carimbo, que Sô Juquita não era
bobo de soltar seu dinheirinho assim desembestado nesse mundéu de Deus, sem as
garantias da lei.
E como
gostava daquela vidazinha simplória que levava na vila. Não sonhava viagens,
nem rios de dinheiro; não pedia sol que não suportasse, nem chuva que desbastasse
barrancos; não excomungava as dores pelo corpo, nem cantava os feitos da
juventude. Era um homem conformado com a pequena sorte de ainda estar vivendo,
apesar dos pesares. A fieira de filhos que fizera se foi mundo afora cuidar
de suas vidas, continuar a linhagem dele, de que tinha muito orgulho. E era só
este o seu grande orgulho. Gavava a netaiada, como dizia, que seus meninos
tinham produzido e que continuariam com seu sobrenome por algumas gerações
ainda. Como ele mesmo fizera com a carga que recebera dos pais e dos avós. E sempre
repetia o provérbio: Quem não gava os seus não merece o nome.
E,
por isso, gostava de ficar ali no bar do Dadá, sem tempo difícil, olhando o
jogo de sinuca, tomando sua cervejinha preta, dividindo-a, por vezes, com um e
outro amigo, dando pitacos no jogo e nos enovelados da vida, no seu parecer,
muito intrincada para uma cabeça só entender.
Quando
o amigo pedia ao Dadá um bife acebolado para acompanhar a bebida, era a hora de
Sô Juquita meter a mão na boca e desalojar as duas cremalheiras. Tirava do
bolso de trás da calça o lenço que sempre trazia limpo para essa ocasião,
embrulhava as ferramentas nele e deixava o pacotinho encostado à parede, perto
da garrafa. Ia começar a roer a carne com suas gengivas nuas. E não havia quem
não reparasse nesse hábito esquisito. Passava um bom tempo mastigando o bolo de
carne, que parecia crescer dentro da boca, mas que não jogava fora. Depois de
um tempo, engolia aquele bolo mascado, sorvia mais um gole de cerveja, passava
o dorso da mão sobre a boca e dizia que a bola sete estava cai, não cai,
pedindo para morrer.
Eu
era menino ainda e gostava de ver aquilo. Achava engraçado. Justamente tirar os
dentes para mastigar carne. Na minha cabeça, era algo meio incompreensível. Mas
Sô Juquita tinha lá sua experiência e devia saber muito bem o que fazia.
Não
bateu um dezembro quente e chuvoso no calendário, e Sô Juquita foi tirar um
cochilo depois do ajantarado de domingo. Se esqueceu de desalojar os apetrechos
da boca e acabou por engolir a peça superior, que ficou engastalhada na garganta.
Sá
Vicenza, quando voltou da missa das dezesseis horas, encontrou o velho inerte,
todo roxo, revirado na cama desarrumada.
A dentadura
frouxa fora o carrasco de Sô Juquita.
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Imagem em legal.adv.br. |
Com muita piada, mas com um final trágico! Adoro tua maneira de escrever.
ResponderExcluirObrigado, amigo! Fico feliz com a sua passagem aqui no blog. Abraços.
ExcluirVai ver sonhou saboreando um bife... belo causo, Saint-Clair.
ResponderExcluirProvavelmente, Paulo Laurindo!
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