17 de dezembro de 2014

FUI!

De pronto, escreveu que não gostava mais dela, na sacola do pão, sobre a mesa do café da manhã. A mensagem só não ficou estranha, porque a letra grande ultrapassou o círculo de manteiga embaixo da letra M, de modo que se lia quase com perfeição NÃO TE AMO MAIS, assim mesmo com letras maiúsculas. E não terminou de modo elegante, porque não era do tempo do bolero e do samba-canção. Grafou apenas FUI, sem assinar, porque também era desnecessário. Só ela iria ler; só a ela interessaria a mensagem.
Deixou a xícara suja e o bilhete esculhambado entre as migalhas de pão. Saiu sem bater a porta, para que ela não acordasse, e ganhou a rua e o mundo. Se sentiu mais livre que pipa avoada.
Quando ela acordou e foi fazer o desjejum, percebeu o recado somente ao pegar o pão. Achou estranho. Eram apenas duas frases em letras grandes: NÃO TE AMO MAIS. FUI. Como não houvesse destinatário nem assinatura, imaginou que a inscrição já tivesse vindo da padaria, onde comprara o pão na noite anterior, ao sair do trabalho. Só foi atinar para que o TE era para si e o autor era o companheiro, ao ver que ele levara a mala preta e várias peças de roupa do armário. Canalha, não teve nem a elegância de lhe dizer, pensou furiosa! Não iria chorar por um traste daquele. Bem que tinha certa paixão pelo tipo, mas não era de sair debulhando lágrimas por alguém que a tratara deste modo. Que vá para o inferno, o diabo que o carregue. Ou uma vagabunda qualquer, naturalmente! Deve ter ido atrás de outra idiota, que lhe prometera mundos e fundos.
Ela se arrumou, como sempre, para ir ao trabalho no centro da cidade. Somente Elizete, sua amiga e confidente, saberia desta armadilha em que caíra. Também pudera. Encontrou o outro num samba na Gamboa, achou que fosse o príncipe encantado, só porque sabia cantar as canções de Paulinho da Viola de cabo a rabo. Quando o ouviu se esgoelar dizendo que havia sido um rio que lhe passara pela vida, achou que a Portela estivesse entrando na avenida e abriu seu coração para ele. Tal uma passista desavisada das imperfeições da passarela.
O que certo tipo de homem mais gosta é achar uma mulher que saiba lavar e cozinhar, ainda bem à moda antiga. Ela não era bem deste tipo, porém tinha seu apartamento montado em Del Castilho, a vida financeira equilibrada, bom emprego numa repartição pública do estado e o gosto das rodas de samba, dos carnavais e dos passeios frequentes. É dela que ele precisava, para encostar sua malandragem nem tão carioca assim, pois que viera do interior de Minas Gerais, para tentar a vida no Rio de Janeiro.
Assim que começaram a relação, ela gostava de apresentá-lo como noivo – ele com aquela cara lavada na sem-vergonhice, de não se deixar intimidar pelos olhares de desaprovação das amigas mais chegadas. Como noivar com um tipinho deste, pensavam as amigas. Ela fingia não entender tais olhares e tocava o barco adiante, pensando que, um dia, elas se renderiam à sinceridade dele.
No entanto, ele se aboletou com todas as honras na vida dela e servia-lhe de companhia por vários lugares onde o pandeiro batesse, onde houvesse cerveja gelada, onde pudesse beliscar tira-gosto, sem nunca se preocupar em meter a mão no bolso para pagar a conta. Ela o havia transformado quase num potentado árabe. Só lhe faltava o harém!
E chegou o tipo à coragem – se é que tal gesto seja qualquer tipo de coragem – de lhe dizer, via sacola de pão, que não gostava mais dela. É que, já há algum tempo, sua vida não era o alvoroço dos primeiros tempos. Já lhe era cobrado ver o jogo em casa, com cervejinha gelada e petiscos da padaria comprados cedo e requentados no micro-ondas. Isto já lhe andava a dar comichões por dentro. Começou a se sentir cão de guarda de madame. E coleira ele não admitia em nenhuma hipótese.
E, por isso, e por mais outras tantas coisas que se dispensam enumerar, pois que nenhuma alma feminina seria capaz de entender, é que tomou seu rumo, a mala preta arrastada calçada afora, sem deixar rastros. Caiu no mundo, caiu na vida.
Como, nem sempre, as histórias modernas terminam em happy end, esta também teve final quase trágico.
Certa madrugada, saindo ela de mais um roda de samba, acompanhada de novo parceiro, dá de cara com o tipo, bêbado, a roupa em desalinho, barba por fazer, consumindo, num último trago da garrafa, a desesperança de uma vida sem solução. Mal ela o reconheceu, ajeitou o cabelo farto, deu o braço ao parceiro e lhe disse:
- Querido, cuidado com esse bêbado aí, que ele pode esbarrar em nós.

Jean Béraud (1849-1935), O café Absinto, 1909 - Museu Carnavalet (comjeitodearte.blogspot.com).

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