Lá pelos fins dos anos cinquenta, em Visconde de
Rio Branco, Minas Gerais, o carro de transporte funerário era, na verdade, a
carroça de burro do Ventura.
Ventura era um mulato alto, magro, cara de poucos
amigos e beberrão. Seu café da manhã começava com uma lapada de cana caprichada.
E o dia seguia entre doses e carretos. Quando não havia defunto, ele
transportava qualquer tipo de carga, desde esterco de bosta de boi, até
pequenas mudanças. Fazia o frete mais barato da cidade.
Minha amiga Cleia Miranda, que me contou esse
causo, disse que, naquele tempo, o caixão das almas menos afortunadas consistia
numa tábua, sobre a qual se colocava o corpo do morto, com uma armação de ripas
cobertas por um tecido roxo tão fino, mas tão fino, que era possível
identificar o defunto em seu interior.
- Ah, coitado! Lá vai seu Claudionor!
E lá ia o finado, mãos postas sobre o peito imóvel,
a se balançar ao ritmo das irregularidades dos paralelepípedos.
Por essa época, doutor Ulisses era o diretor do
hospital. Médico conceituado, era tido por todos como a palavra definitiva
sobre a vida dos rio-branquenses. Era como se ninguém lá morresse sem a sua
permissão. E, para Ventura, era Deus no céu e o Doutor Ulisses na terra.
Certo dia, Ventura passa pelo médico num dos
corredores do hospital e recebe a incumbência de mais um frete.
- Ventura, mais um óbito! O paciente do quarto 106
faleceu. Vá lá pegar o corpo.
A cabeça já movida a algumas doses da mardita,
Ventura se engana e entra no quarto errado. Periclitando na corda bamba da
vida, já há dias sem comer seu franguinho com quiabo, seu Juquinha, morador do
Barreiro, se espanta com a entrada do papa-defunto em seu quarto e tem uma
súbita melhora no quadro, só pelo apavoramento com aquela aparição indesejada.
- Que é que ocê tá fazeno aqui, Ventura?
- Vim pegar ocê. Doutor Ulisses disse que é causo de
morte.
- Que morte, Ventura? Não tá veno eu aqui vivinho
da silva, falano com ocê?
- Ocê tá morto, Juquinha! Quer saber mais que o
doutor Ulisses?!
E, não fosse a intervenção da enfermeira-chefe
Clotilde, alertada pela discussão entre o papa-defunto e o quase defunto,
Juquinha seria rebocado por Ventura, para mais um carreto funéreo. Porque palavra
de doutor Ulisses não se discutia. Era Deus no céu; e doutor Ulisses, na terra!
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Imagem em notícias.uol.com.br. |
..lindo conto companheiro Saint-Clair Mello
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