12 de dezembro de 2014

DEUS, NO CÉU; DOUTOR ULISSES, NA TERRA!


Lá pelos fins dos anos cinquenta, em Visconde de Rio Branco, Minas Gerais, o carro de transporte funerário era, na verdade, a carroça de burro do Ventura.

Ventura era um mulato alto, magro, cara de poucos amigos e beberrão. Seu café da manhã começava com uma lapada de cana caprichada. E o dia seguia entre doses e carretos. Quando não havia defunto, ele transportava qualquer tipo de carga, desde esterco de bosta de boi, até pequenas mudanças. Fazia o frete mais barato da cidade.

Minha amiga Cleia Miranda, que me contou esse causo, disse que, naquele tempo, o caixão das almas menos afortunadas consistia numa tábua, sobre a qual se colocava o corpo do morto, com uma armação de ripas cobertas por um tecido roxo tão fino, mas tão fino, que era possível identificar o defunto em seu interior.

- Ah, coitado! Lá vai seu Claudionor!

E lá ia o finado, mãos postas sobre o peito imóvel, a se balançar ao ritmo das irregularidades dos paralelepípedos.

Por essa época, doutor Ulisses era o diretor do hospital. Médico conceituado, era tido por todos como a palavra definitiva sobre a vida dos rio-branquenses. Era como se ninguém lá morresse sem a sua permissão. E, para Ventura, era Deus no céu e o Doutor Ulisses na terra.

Certo dia, Ventura passa pelo médico num dos corredores do hospital e recebe a incumbência de mais um frete.

- Ventura, mais um óbito! O paciente do quarto 106 faleceu. Vá lá pegar o corpo.

A cabeça já movida a algumas doses da mardita, Ventura se engana e entra no quarto errado. Periclitando na corda bamba da vida, já há dias sem comer seu franguinho com quiabo, seu Juquinha, morador do Barreiro, se espanta com a entrada do papa-defunto em seu quarto e tem uma súbita melhora no quadro, só pelo apavoramento com aquela aparição indesejada.

- Que é que ocê tá fazeno aqui, Ventura?

- Vim pegar ocê. Doutor Ulisses disse que é causo de morte.

- Que morte, Ventura? Não tá veno eu aqui vivinho da silva, falano com ocê?

- Ocê tá morto, Juquinha! Quer saber mais que o doutor Ulisses?!

E, não fosse a intervenção da enfermeira-chefe Clotilde, alertada pela discussão entre o papa-defunto e o quase defunto, Juquinha seria rebocado por Ventura, para mais um carreto funéreo. Porque palavra de doutor Ulisses não se discutia. Era Deus no céu; e doutor Ulisses, na terra!


Imagem em notícias.uol.com.br.

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