5 de dezembro de 2013

MELCHIOR

Melchior foi afrontado por um insulto cerebral que lhe deixou a banda esquerda do corpo estropiada. Ele nunca tivera cuidados com a saúde. Achava que, por ser filho do velho Epaminondas Nepomuceno, pegador de boi brabo pelo chifre, tivesse a saúde inoxidável. Inclusive se vangloriava de, aos oito anos de idade, ter-se despencado de um pau-d'alho de mais de cinco metros de altura, e ter apenas furado o fundo do calção numa ponta de galho. E se sentia imorrível.

O pai varou os noventa e tais e só deu com os costados na cerca por ter submergido no açude do Zé Ferraz, quando o cavalo escorregou no barro mole feito por uma chuva daquelas. O cavalo se salvou, porque nadou até a margem. O velho, para sua desgraça, afundou com os embornais de compra que trazia nos ombros. E apenas não virou comida de peixe, em virtude de o baio ter chegado à sede da fazenda sem o cavaleiro, o que deu tempo a que ele fosse pescado por rede de arrasto, apenas as pálpebras roídas de lambari.

Agora Melchior estava ali, aboletado numa cadeira de balanço, chinelão de couro no pé cascudo, a linguagem completamente atrapalhada, de parecer grego arcaico ou algum dialeto perdido do interior do Cazaquistão. Se pedia rapadura, traziam-lhe farinha. Se dizia calibrina, vinham com angu. E, quando urrava que queria mulher, serviam-lhe uma canjazinha de galinha magra, danada de insossa.

Imagem em imoveis.culturamix.com.

Ruminava o dia no alpendre da casa de altos e baixos - um jenipapeiro frondoso de sentinela logo adiante -, a olhar o pouco movimento da estradinha de terra, que serpenteava suavemente morro acima, em direção à Forquilha e à serra da Boa Esperança.

Quem passasse pela estrada, de regra montado no lombo de algum animal, lhe fazia um gesto e o chamava pelo nome, conhecido que era de toda gente:

- Melchior!

Na vastidão silenciosa daqueles ermos, era impossível deixar de ouvir. Ele levantava o braço que lhe sobrara bom e grunhia alguma coisa incompreensível. Talvez estivesse imprecando, lançando uma maldição sobre a saúde alheia. Talvez estivesse agradecendo à gentileza do cumprimento. Vai lá saber!

Tudo o que fizera na vida, assim nem tão longa, estava agora sob o comando de Carmosina, sua esposa legítima, mãe de seus cinco filhos, todos emigrados de Liberdade para correr mundo, pois consideravam que ali não era lugar para suas ambições.
 Carmosina teve de se vestir de homem para mandar em colonos e meeiros, resolver semeaduras e colheitas, vender e cobrar a produção da terra, discutir nas reuniões da cooperativa de laticínios. E, por fim mas não menos importante, escorraçar a família do Faustino da propriedade, a fim de se vingar da filha do empregado, amante do seu marido. E só não botou bigode, por ainda ter um lado feminino bastante forte. De resto, parecia um homem, na força e na determinação.

Os filhos, de vez em quando, apareciam, quase sempre com o pleito de um ajutório, motivo para desfolhar o talão de cheques ou vender alguma rês de urgência, o que rendia sempre menos do real valor de mercado.

Nessas oportunidades, Melchior ficava agitado, falava aquele monte de palavras incompreensíveis e ainda se aborrecia quando o ingrato lhe vinha fazer um gesto de carinho. A cada visita de filho, sentia que um pedaço do patrimônio virava fumaça, sumia no céu como a poeira fina da estrada ou as nuvens que passavam céleres, em ocasiões de vento virado.

Melchior passou um bom tempo nesse ramerrão de vida, sem se dar conta de como iam as coisas em torno de si, pois a mulher lhe evitava aborrecimentos e preocupações. Até que certo dia quente de verão, o sol tinindo sobre o cocuruto de gentes e bichos, ao tentar responder ao cumprimento do compadre Antônio Quinto, que passava garboso em sua mula na direção da vila, foi novamente afrontado por um segundo derrame, mais peçonhento e daninho que o primeiro, que lhe fez a cabeça tombar para trás e a alma voar de passarinho, alpendre afora, como nunca acontecido em terras do Jacó.

Quando Carmosina chegou com um copo de água fresquinha, para apaziguar um pouco o calor, encontrou o marido defunto, já mais do que imprestável para qualquer coisa. Gritou por Juventino, ajudante da família que morava numa das tulhas ao lado do terreirão de café, para vir correndo, pois o patrão partira desta para melhor.


O enterro de Melchior no cemitério da vila teve acompanhamento até dos alunos do grupo escolar, do qual sempre fora benfeitor. Do fundo do préstito, com um véu negro sobre a cabeça, a filha do Faustino trazia pela mão o filho que Melchior não conheceu, mas que, segundo as fofoqueiras contumazes, parecia mais com o falecido do que seus filhos reconhecidos em cartório, atestados por certidão: mais um bem deixado pelo marido a fazer parte da disputa pela herança.

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