(Para minha mãe, pelo Natal.)
Algumas vezes me vem à memória a faina de minha mãe ao fogão,
em certas ocasiões. Não sei por que isso me assalta de vez em quando. Não que
me doa. Ao contrário, para mim que não estava na lida dura de mãe de uma casa
pobre, tudo eram alegrias.
Certas vezes, chegava a época de torrar o café que seria
consumido. Isso demandava a tarde inteira de trabalho, logo após o almoço. E
não se fazia mais nada nesse dia.
O fogão era à lenha, encostado num dos cantos da cozinha,
revestido de cimento vermelho por algum pigmento – talvez zarcão. Em sua
traseira, ficava o forno, de onde subia uma chaminé feita de manilhas redondas
de barro.
Por essa época, a única coisa em minha casa movida a energia
elétrica era o rádio, além das lâmpadas, é claro. Não tínhamos, por pobre ou
por ainda não existirem, nenhum dos aparelhos que, posteriormente, foram
aparecendo no mercado para facilitar a vida das pessoas. Na verdade, em
Carabuçu, pelos idos de cinquenta do século passado, até os anos sessenta,
pouquíssimas famílias possuíam geladeira. Mesmo o liquidificador chegou um
pouco depois, eu já entrando na adolescência. Quando a tevê brilhou nas casas
das pessoas de maiores recursos, já estava um galalau, morando em Bom Jesus.
Por isso é que minha mãe, em sendo pobre, tinha de se
desdobrar em produzir o café que se ia beber durante certo tempo. Meu pai
comprava os grãos secos, e minha mãe os torrava toda uma tarde. Eu sempre
ficava ali ao seu lado, sentado numa cadeira, olhando a trabalheira toda que
ela tinha, no calor do fogão, em meio a alguma fumaça que a lenha fazia, e
conversando. No final, estávamos – nós e a casa – um pouco defumados. Mas com o
cheiro gostoso do café.
Meu pai fizera um suporte sobre o fogão em que a torradeira –
uma lata de banha de vinte litros cortada ao meio e furada a prego, com alças
de arame e um cabo de vassoura como mecanismo de movimento – era manipulada por
mamãe, num vaivém sem parar, a fim de que não se queimassem os grãos. Vez ou
outra, ela aspergia água sobre eles, durante a torra, momento em que a fumaça e
o aroma subiam mais fortes na cozinha miúda.
Para que não ficasse com muito cheiro de café torrado, minha
mãe cobria a cabeça com um pano. E era única vez em que a via assim.
Sempre fui um menino meio quieto, tranquilo, e gostava de conversar
com minha mãe, que sabia de muita coisa do mundo ainda por descobrir para mim.
Por vezes, nessas ocasiões, aparecia um de seus irmãos, principalmente Paulinho
ou Cate, a lhe contar sobre o último filme que tinham visto no cinema em Bom
Jesus ou sobre suas peripécias com as moças locais.
Outro momento de trabalho menos intenso, porém mais
frequente, era a feitura de pés de moleque, que meu pai vendia na venda que se
situava na parte da frente da casa. Muitas pessoas ficavam esperando a saída
daquela delícia que minha mãe faz ainda hoje, com seus oitenta e sete anos, de
forma incomparável, embora eu mesmo – maldito fantasma da diabetes – não me
delicie mais com eles. Ela até briga comigo, dizendo que sou radical:
- Unzinho só não vai fazer mal!
Porém eu me privo desse prazer de que já desfrutei por
décadas. Para que não me sinta muito frustrado, penso sempre: já comi muito! E
vou levando a vida sem essa delícia.
Pois os pés de moleque saíam, se não me falha a memória, dia
sim, dia não. E é interessante que tanto havia fregueses que deles gostavam
ainda um tanto macios e quentinhos, quanto os que os preferiam dormidos de um
dia para o outro. Eu comia qualquer um, porém o quentinho tinha a má fama de
causar piriri em criança. Talvez esse argumento fosse uma maneira de impedir
que eu e meus irmãos começássemos a devorá-los tão logo estivessem prontos.
À feitura do doce propriamente, antecedia o descasque das vagens, normalmente realizado na noite anterior com todos nós – pais e filhos –
em torno de uma grande peneira, ao pé do rádio, ouvindo os programas que
faziam a delícia daquelas noites singelas do interior: A Lira de Xopotó,
PRK-30, Balança Mas Não Cai, Grande Teatro Tupi, alguma partida de futebol de
que meu pai, eu e meu irmão Gute sempre gostamos.
No dia seguinte, mamãe torrava os grãos num tabuleiro ao
forno ou mesmo na torradeira de café e, depois que eles esfriassem, tinham sua
casca removida manualmente aos punhados, na concha das mãos em movimentos
opostos. A seguir, sofriam maceração com uma garrafa, de modo a que uma parte ficasse quebrada. Nesse momento, aproveitávamos para comer alguns. Era a paga
pela ajuda na tarefa.
Num tacho de cobre, que ela trazia sempre brilhando, a poder
de sabão preto, areia e caldo de limão, derretia o açúcar mascavo, conhecido
por nós como açúcar batido (Alguns até diziam no feminino: açúcar batida.), até
que atingisse o ponto ideal, testado sempre numa cuia com água, sobre a qual
derramava um pouco do caldo formado pelo fogo intenso, sempre alimentado por
lascas de lenha. Chamávamos a esse produto puxa-puxa, parente chegado do pirulito, que devorávamos de
imediato.
Obtido o ponto, minha mãe retirava o tacho do fogo e
continuava a mexer, até o momento em que acrescentava os caroços de amendoim
torrado e começava a tirar, com duas colheres, as porções que moldariam os
doces sobre o tampo de madeira da mesa. Para que a mistura não enrijecesse,
estava sempre mexendo. Assim que esfriassem um pouco mais, os doces podiam ser
removidos da mesa com um simples toque dos dedos. E iam para o vidro redondo da
venda de meu pai, já alguns fregueses prontos a comer os primeiros exemplares
do dia.
Minha mãe nunca teve empregada. Sempre fez todo o trabalho da
casa. Quando crescemos um pouco mais, ajudávamos em algumas outras tarefas.
Ainda hoje, quase chegando aos noventa, consegue produzir maravilhas da cozinha
trivial brasileira – nossa tão cultuada comida caseira –, embora dizendo que
jamais tenha gostado de cozinhar, fazendo-o tão somente para alimentar a casa.
E, a despeito disso, teve tempo de criar, junto com meu pai,
cinco filhos, que mandou à escola já alfabetizados, ler seus livros, escrever
seus poemas, costurar camisas com maestria, cultivar suas amizades, conversar com as vizinhas nas noites
frescas da vila e falar com Deus o tempo todo, pedindo por todos nós, como se
garantisse a salvação de cada um com a mesma devoção com que se dedicou e se
dedica à família em parceria com o fogão por tanto tempo, sem nenhum demérito.
Aliás, muito ao contrário. E disso todos tiramos proveito!
![]() |
Almeida Junior, Cozinha caipira, 1895 (Pinacoteca do Estado de São Paulo). |
Li, encantada, o seu texto. É uma bela homenagem a sua Mãe.
ResponderExcluirBeijos para os dois.
Daisy
Obrigado, Daisy!
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