17 de maio de 2020

CHEIRO DE CAFÉ


Estou à varanda
Exposto aos raios do sol de maio
E enquanto leio Sophia de Mello Breyner Andresen
Sobe um cheiro de torra de café

De imediato
Como um Proust caipira
Sou levado à minha pequena vila
À minha casa simples
À minha infância

Hoje é dia de torrar café
Minha mãe se prepara
Cobre os cabelos com inusitado pano branco
Para que não recendam a café por dias seguidos
Pendura no gancho sobre o fogão a lenha
O improvisado torrador
Feito de meia lata de gordura de porco
A que meu pai acrescentara cabo de uma vassoura
E cujo fundo perfurara geometricamente com prego

Eu miúdo
Cujos pés não tocam o chão da cozinha
Fico sentado ao lado
Não muito próximo ao fogão
E acompanho a faina da minha mãe
Balançando em vaivém
Aquela geringonça engraçada feita por meu pai
Enquanto ouço histórias de nossa família da Bíblia de bichos que falavam
Quando eu ainda não havia nascido

E vai assim minha mãe
Um pouco depois do almoço
Por um tempo enorme
Até o finzinho da tarde
Perfumando a casa com o cheiro inebriante do café torrado
Esse mesmo cheiro
Que agora sobe até a varanda
Onde aguardo o tempo de voltar à vida
Momentaneamente enclausurada de medo


Nenhum comentário:

Postar um comentário