2 de julho de 2019

CARABUÇU DOENTE (Parte III)

Aqui vai a terceira e última parte do levantamento sobre as doenças da vila, no tempo da minha meninice e adolescência.
Mau olhado: O mau olhado é uma doença, ou antes, uma condição sobretudo psíquica e mítica na crença do povo do interior. Atribuía-se a algumas pessoas a capacidade de, com seu olhar, produzir efeitos nocivos e às vezes fatais sobre plantas, animais e pessoas. Tive um tio-avô que era conhecido por seu olhar perigoso. Contavam que ele descobriu esse seu lado negro, quando admirou um pássaro sobre um galho de árvore e o bichinho, de imediato, tombou fulminado. Ao visitar um conhecido, ele alertava a pessoa para tirar de seus olhos qualquer passarinho de estimação. Tal característica também era nomeada como “olhar de seca pimenteira”. Por outro lado, também, meu tio era chamado para olhar bicheiras de animais, a fim de que elas acabassem. Era pôr o olho na bicheira, para o boi, por exemplo, ficar curado.
Nó nas tripas: A obstrução intestinal, que provoca a retenção de fezes, era assim chamada na vila. É provocado pela torção do intestino e requer até mesmo procedimento cirúrgico em hospital.
Paludismo: É o mesmo que impaludismo ou malária. Nunca soube de casos de malária na nossa região, apenas era referida como uma doença antiga, que havia causado grandes problemas.
Panariço, var. de panarício: O panariço é o que a medicina chama de paroníquia, isto é, unheiro. Quando criança, era a doença que mais me causava apreensão. O panariço tinha a fama de ser uma doença de reincidência programada: se desse no dedo fura-bolo da mão direita, daria no fura-bolo da mão esquerda, tão logo fosse curado da primeira vez. Não era incomum ver pessoas com os dedos enrolados em gaze, com a mão para cima, a fim de aliviar a pressão que ocorria pela inflamação. Ao saber que aquele dedo mumificado era panriço, eu dava um jeito de me afastar, com medo de pegar a doença.
Pedra nos rins: Ainda hoje assim se diz para o cálculo renal. Quando percebido a tempo, corria-se para o João Gregório ou o Doca Nascimento e suas poções milagrosas. O preparado levava o nome de chá de quebra pedra e tinha função de destruir, antes que se expelisse com muito sofrimento, os cristais solidificados na bexiga.
Pescoço duro: Na vila, ninguém dizia torcicolo para a contração dolorida do pescoço que deixava a cabeça de lado. O pescoço duro podia ocorrer por um movimento brusco ou por um vento encanado que soprava sobre tal região do corpo. Nesse caso, não havia remédio melhor do que uma reza poderosa de dona Carola ou Sá Luiza, as benzedeiras mais famosas da vila. Minha bisavó Mariquinha também era conhecida como rezadeira. Eu mesmo, em criança, tive um, após uma pelada no campo do Liberdade, e fui atendido pela Sá Luiza. Ela colocou minha cabeça sobre suas pernas, pegou um pedaço de pano limpo e uma agulha e linha e foi costurando o pano sobre a área afetada e fazendo sua oração quase inaudível. Quando ela terminou, meu pescoço estava curado.
Minha irmã Cristina também conhece uma simpatia boa para todo tipo de torção, contração e estiramento, com o mesmo procedimento acima. Deve ser feita por três vezes, durante três dias, com exceção de sábados e domingos, e antes do pôr do sol. É assim:
O que eu rezo?
Rezo nervo torcido,
Osso quebrado
E carne magoada.
O que eu rezo?
Segundo ela, é tiro e queda!
Piriri: É a diarreia nossa de cada dia, normalmente motivada por algum tipo de comida; excesso de garapa, na época da colheita da cana; excesso de manga ou de mamão, frutas danadas para soltar intestino de menino! Na época, não havia o soro caseiro. Então o tratamento, às vezes, era com comida também: suco de caju, ou mesmo a fruta, feijão com farinha durinho, os mais comuns. Às vezes, uma homeopatia do meu bisavô Antonico Pinto, ou o socorro dos remédios do Zé da Farmácia e do Antônio Miranda, quando o piriri persistia por mais tempo.
Sapinho: É a candidíase oral, produzida por um fungo e muito comum em bebês e crianças. Era habitual tratar-se o sapinho com violeta de genciana, um antisséptico de coloração vibrante que deixava a carinha das crianças pintadas.
Sífilis: Sífilis foi uma doença extremamente letal antes que se descobrisse a penicilina. É uma doença infecto-contagiosa, sexualmente transmitida, que fez muitas vítimas. Até que surgiu uma injeção milagrosa, vulgarmente conhecida como 1914. Meu pai contava que o doente de sífilis que aguentasse a potência da 1914 estaria curado. Se não aguentasse, batia as botas. Era propriamente um coice de mula em forma de remédio.
Simple (pronúncia local para “simples”) é um tipo de retardo mental em crianças.
Tesourinha: consiste no problema caracterizado por uma moleza nas pernas de crianças.
Tiriça: é icterícia e se tratava com banho de carrapicho.
Unha encravada e unheiro são aparentadas do panariço, descrito mais acima.
Vento virado: esta doença não permitia que a criança conseguisse colocar as mãos nos pés. Era tratada com o exercício de juntar a mão esquerda com o pé direito, na direção das costas da criança; e a mão direita com o pé esquerdo.
Havia também as doenças infecto-contagiosas que acometiam sobretudo as crianças: caxumba, sarampo, catapora ou varicela, coqueluche, as mais comuns; e varíola, também conhecida como bexiga, menos comum.
A caxumba exigia também, como tratamento, repouso absoluto, inclusive com a recomendação de que o menino doente ficasse de pernas para cima, para a caxumba não descer para as partes, sob pena de ficar rendido. Essa consequência é a inflamação dos testículos, o que levava os pais a temerem que o filho se tornasse estéril.
Com o aparecimento da vacina, o posto de saúde da vila começou campanha de vacinação das crianças. Meu tio-avô Cícero era o responsável por aplicá-las. Numa delas, o procedimento se dava assim: ele passava um algodão com álcool no braço; pegava uma pena de caneta tinteiro (Os mais novos nem devem saber o que é isso.) com a ponta quebrada, de modo a ficar rombuda; escalavrava a pele, esticada com os dedos, até minar sangue; em seguida soprava por um canudinho fino a dose do remédio. Ao fim recomendava que não se podia lavar, secar ou passar a mão sobre o remédio, que deveria secar naturalmente no local. É por isso que ficamos com a marca da vacina no braço.
Com esta terceira parte, fica encerrado o levantamento das doenças que nos acometiam por aquele tempo. Muitas delas estão até hoje entre nós, já que as condições sanitárias ainda não são as ideais, às vezes apenas com os nomes modernos.

Resultado de imagem para pena de caneta
Quebrava-se a ponta da pena da caneta, de modo a servir para arranhar a pele onde se aplicava a vacina.
(imagem em mercadolivre.com).

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Nota final: Agradeço a preciosa ajuda da minha mãe e da minha irmã Cristina, com suas memórias sobre o tema, as quais enriqueceram o texto..

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