Nem
tudo na vila eram flores. Aliás, em lugar nenhum tudo são flores. Apesar da
vida pacata que vivíamos por volta dos anos cinquenta e sessenta do século
passado, também a vila era acometida por diversos males físicos. Alguns de
gravidade relativa, outros nem tanto, e um pouquinho só bastante graves. Não
quero que os leitores pensem que em Carabuçu vivêssemos para sempre, sem as
mazelas e as ziquiziras que atacavam as cidades e as vilas próximas. Morríamos
também, embora nem tanto assim. Foram poucos os enterros que presenciei, sendo
o mais impactante o do jovem goleiro do Liberdade Esporte Clube, Reginaldo, que
morreu afogado nas águas do Itabapoana e levou à vila uma imensa quantidade de
pessoas ligadas ao futebol.
Minha
avó materna, a quem chamávamos Maína, sempre dizia que tinha uma “novidade”,
referindo-se a problemas de saúde, quando lhe perguntávamos como estava passando.
E também outras pessoas assim se expressavam. Outras tantas, indagadas sobre
sua situação, falavam que estavam com perrengues, a denunciar algum incômodo.
Desta
forma, “novidades” e “perrengues” eram as palavras mais comuns com que o
carabucense aludia a males do corpo físico.
De
vez em quando, eu mesmo pude ouvir alguém a reclamar na venda do meu pai que
estivesse adoentado.
-
Como é que vai, Tião?
E
ele respondia, um tanto contrariado:
-
Estou com um perrengue aqui, que está me deixando estropiado.
E lá
fui eu perguntar ao meu pai, na primeira vez que ouvi, o que era perrengue.
Assim,
as doenças e os males físicos tinham na vila uma identificação popular e,
muitas vezes, estranha. Vou aqui tentar fazer um inventário das principais.
É
bem verdade que tínhamos algumas alternativas para enfrentá-las. Uma delas,
pelo menos, poderia ser bem sucedida, a não ser no caso “daquela doença ruim”.
Começava-se pelo auxílio de uma benzedeira. E na vila tínhamos duas, que
conseguiam debelar os males mais tradicionais e de menos malignidade: Dona
Carola, mãe do carpinteiro Zé Carola, e Sá Luiza, uma senhorinha pequenininha
que estava sempre com um pano enrolado nos cabelos. Quando o perrengue exigia
um pouco mais, recorríamos às garrafadas do João Gregório e do Doca Nascimento, famosos pelas
infusões que faziam com as mais diversas ervas. Se o assunto fosse um pouco mais
complicado, eles requeriam uns dias para preparar o sanativo recomendado para tal
ziquizira. Alguns problemas, no entanto, só com a intervenção quase miraculosa
do Zé da Farmácia ou do Antônio Miranda, que conheciam manipulação de drogas,
os meandros da alopatia e a eficácia de uma boa injeção. Já meu bisavô Antonico
Pinto cuidava dos doentes com homeopatia. Ele tinha um grande baú de madeira,
cheio daqueles vidrinhos com as aguinhas mais eficientes para debelar uma
febre, uma gripe renitente. Se nada disso surtisse efeito, o jeito era correr
para Bom Jesus do Itabapoana, sede do município, e pedir socorro a doutor de
diploma na parede, como os médicos José Seródio, Waldyr Nunes, Ari Morais,
Colombino Teixeira, Rui Marques.
Feita
essa introdução, vamos aos males que nos acometiam.
Açúcar
no sangue: era a expressão usada para diabetes.
Amarelão:
é o que a ciência chama por ancilostomíase,
infecção causada por vermes que provoca grave anemia.
Aquela
doença ruim: O povo sempre teve a ideia de que pronunciar certas palavras
poderia fazer com que o seu sentido se materializasse ou ganhasse ainda mais
força. Por isso, não se ouvia ninguém dizer câncer, mas “aquela doença ruim”,
embora, no tempo em que lá vivi, não tenha tido ciência de algum morador
acometido por ela. Assim como não se enunciava a palavra câncer, evita-se
também demônio, diabo, satanás. Provavelmente o bicho poderia aparecer.
Desconjuro!
Barriga
d'água: é o que a medicina denomina ascite. Era o jeito de se referir à cirrose
hepática.
Berruga
(var. de verruga): Comumente dizíamos berruga, em lugar de verruga, embora este
segundo termo não fosse desconhecido.
Bexiga:
é o que se conhece por varíola, doença que deixa o paciente com o rosto marcado
por pequenas cicatrizes.
Boba:
era a forma como se dizia bouba, doença infecciosa da pele, causada pela
bactéria Treponema pertenue. Meus avós Maína e Papai Juquinha, no tempo em que
moravam na Serra da Boa Esperança, tratavam os pacientes infectados com
injeções (penicilina), que iam à vila buscar. Como auxiliar do tratamento, tais
pacientes ficavam isolados durante três dias e eram alimentados exclusivamente
com frango assado, na época uma comida especial. Tanto que há um ditado popular
a confirmar isso: Se um pobre come frango, um dos dois está doente.
Boqueira:
tecnicamente é a queilite angular, ferida no canto da boca, provocada pelo
desenvolvimento excessivo de fungos ou bactérias
Bucho
virado: é o mesmo que espasmo do músculo do diafragma e acometia sobretudo
bebês.
Cobreiro:
é o que hoje se conhece como herpes zoster.
Constipação:
tanto poderia referir-se a prisão de ventre (“estar com os intestinos
constipados”), quanto a obstrução das vias respiratórias, em virtude de forte
gripe.
Ficamos
aqui nesta primeira parte. Breve, neste mesmo blog, a continuação desta doente
crônica.
![]() |
Ilustração de Le malade imaginaire de Molière (em salon-literature.internaute.com). |
Me lembro bem do seu bisavô. Meu pai era muito amigo dele e muitas vezes fomos tratados pelas "milagrosas aguinhas do baú". Certa vez ele disse que o melhor remédio para "piriri" era um bom prato de feijão com farinha. kkkkk
ResponderExcluirHahaha! Até hoje, Josias, se me ocorre isso, vou de feijão com farinha, bem durinho.
ExcluirQue bom ouvir boas histórias de Carabuçu, entre tantas coisas me enche de orgulho meu Pai, José de Rezende Ferraz ou simplesmente Zé da Farmácia,codinome que o acompanhou, mesmo anos após ter deixado a profissão.
ResponderExcluirSeu pai, primo, marcou a história de Carabuçu. Foi importante para muita gente na vila. Pode se sentir orgulhoso dele!
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