9 de março de 2019

CARABUÇU DOENTE


Nem tudo na vila eram flores. Aliás, em lugar nenhum tudo são flores. Apesar da vida pacata que vivíamos por volta dos anos cinquenta e sessenta do século passado, também a vila era acometida por diversos males físicos. Alguns de gravidade relativa, outros nem tanto, e um pouquinho só bastante graves. Não quero que os leitores pensem que em Carabuçu vivêssemos para sempre, sem as mazelas e as ziquiziras que atacavam as cidades e as vilas próximas. Morríamos também, embora nem tanto assim. Foram poucos os enterros que presenciei, sendo o mais impactante o do jovem goleiro do Liberdade Esporte Clube, Reginaldo, que morreu afogado nas águas do Itabapoana e levou à vila uma imensa quantidade de pessoas ligadas ao futebol.
Minha avó materna, a quem chamávamos Maína, sempre dizia que tinha uma “novidade”, referindo-se a problemas de saúde, quando lhe perguntávamos como estava passando. E também outras pessoas assim se expressavam. Outras tantas, indagadas sobre sua situação, falavam que estavam com perrengues, a denunciar algum incômodo.
Desta forma, “novidades” e “perrengues” eram as palavras mais comuns com que o carabucense aludia a males do corpo físico.
De vez em quando, eu mesmo pude ouvir alguém a reclamar na venda do meu pai que estivesse adoentado.
- Como é que vai, Tião?
E ele respondia, um tanto contrariado:
- Estou com um perrengue aqui, que está me deixando estropiado.
E lá fui eu perguntar ao meu pai, na primeira vez que ouvi, o que era perrengue.
Assim, as doenças e os males físicos tinham na vila uma identificação popular e, muitas vezes, estranha. Vou aqui tentar fazer um inventário das principais.
É bem verdade que tínhamos algumas alternativas para enfrentá-las. Uma delas, pelo menos, poderia ser bem sucedida, a não ser no caso “daquela doença ruim”. Começava-se pelo auxílio de uma benzedeira. E na vila tínhamos duas, que conseguiam debelar os males mais tradicionais e de menos malignidade: Dona Carola, mãe do carpinteiro Zé Carola, e Sá Luiza, uma senhorinha pequenininha que estava sempre com um pano enrolado nos cabelos. Quando o perrengue exigia um pouco mais, recorríamos às garrafadas do João Gregório e do Doca Nascimento, famosos pelas infusões que faziam com as mais diversas ervas. Se o assunto fosse um pouco mais complicado, eles requeriam uns dias para preparar o sanativo recomendado para tal ziquizira. Alguns problemas, no entanto, só com a intervenção quase miraculosa do Zé da Farmácia ou do Antônio Miranda, que conheciam manipulação de drogas, os meandros da alopatia e a eficácia de uma boa injeção. Já meu bisavô Antonico Pinto cuidava dos doentes com homeopatia. Ele tinha um grande baú de madeira, cheio daqueles vidrinhos com as aguinhas mais eficientes para debelar uma febre, uma gripe renitente. Se nada disso surtisse efeito, o jeito era correr para Bom Jesus do Itabapoana, sede do município, e pedir socorro a doutor de diploma na parede, como os médicos José Seródio, Waldyr Nunes, Ari Morais, Colombino Teixeira, Rui Marques.
Feita essa introdução, vamos aos males que nos acometiam.
Açúcar no sangue: era a expressão usada para diabetes.
Amarelão:  é o que a ciência chama por ancilostomíase, infecção causada por vermes que provoca grave anemia.
Aquela doença ruim: O povo sempre teve a ideia de que pronunciar certas palavras poderia fazer com que o seu sentido se materializasse ou ganhasse ainda mais força. Por isso, não se ouvia ninguém dizer câncer, mas “aquela doença ruim”, embora, no tempo em que lá vivi, não tenha tido ciência de algum morador acometido por ela. Assim como não se enunciava a palavra câncer, evita-se também demônio, diabo, satanás. Provavelmente o bicho poderia aparecer. Desconjuro!
Barriga d'água: é o que a medicina denomina ascite. Era o jeito de se referir à cirrose hepática.
Berruga (var. de verruga): Comumente dizíamos berruga, em lugar de verruga, embora este segundo termo não fosse desconhecido.
Bexiga: é o que se conhece por varíola, doença que deixa o paciente com o rosto marcado por pequenas cicatrizes.
Boba: era a forma como se dizia bouba, doença infecciosa da pele, causada pela bactéria Treponema pertenue. Meus avós Maína e Papai Juquinha, no tempo em que moravam na Serra da Boa Esperança, tratavam os pacientes infectados com injeções (penicilina), que iam à vila buscar. Como auxiliar do tratamento, tais pacientes ficavam isolados durante três dias e eram alimentados exclusivamente com frango assado, na época uma comida especial. Tanto que há um ditado popular a confirmar isso: Se um pobre come frango, um dos dois está doente.
Boqueira: tecnicamente é a queilite angular, ferida no canto da boca, provocada pelo desenvolvimento excessivo de fungos ou bactérias
Bucho virado: é o mesmo que espasmo do músculo do diafragma e acometia sobretudo bebês.
Cobreiro: é o que hoje se conhece como herpes zoster.
Constipação: tanto poderia referir-se a prisão de ventre (“estar com os intestinos constipados”), quanto a obstrução das vias respiratórias, em virtude de forte gripe.
Ficamos aqui nesta primeira parte. Breve, neste mesmo blog, a continuação desta doente crônica.

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Ilustração de Le malade imaginaire de Molière (em salon-literature.internaute.com).

4 comentários:

  1. Me lembro bem do seu bisavô. Meu pai era muito amigo dele e muitas vezes fomos tratados pelas "milagrosas aguinhas do baú". Certa vez ele disse que o melhor remédio para "piriri" era um bom prato de feijão com farinha. kkkkk

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    1. Hahaha! Até hoje, Josias, se me ocorre isso, vou de feijão com farinha, bem durinho.

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  2. José Ricardo de Rezende12 de março de 2019 às 21:54

    Que bom ouvir boas histórias de Carabuçu, entre tantas coisas me enche de orgulho meu Pai, José de Rezende Ferraz ou simplesmente Zé da Farmácia,codinome que o acompanhou, mesmo anos após ter deixado a profissão.

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  3. Seu pai, primo, marcou a história de Carabuçu. Foi importante para muita gente na vila. Pode se sentir orgulhoso dele!

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