23 de março de 2019

TOMO A LIBERDADE DE LHE DIZER

Tomo a liberdade de lhe dizer que...

Tenho pela minha vila natal um amor poético, patético, desmedido, embora silencioso, calado dentro de mim. Um amor que teima em continuar pulsando a cada batida do coração, a cada respirar compassado dos pulmões, a cada olhar curioso pelas coisas à minha volta.

Vivi lá durante meus anos de meninice e juventude, o que foi determinante para que as raízes se aprofundassem e não me permitissem pensar, sem que dela me lembre. Há sempre a vila em minha vida.

Todas as pedras do seu chão ainda estão presentes em mim. Todos os casos dos fregueses da venda do meu pai ainda reverberam nos meus ouvidos encantados de criança. Todas as tentações do futuro, que lia nos jornais, revistas e livros de ficção científica emprestados pelo primo Célio, ainda estão lá na minha infância, movida a dias claros, a dias chuvosos, a verões secos, a invernos rigorosos, a brincadeiras com os amigos. E a uma felicidade indescritível!

Não consigo pensar em mim, sem que esse lado poderoso esteja presente. Sou filho de uma terra singela, simples, sem sofisticação, e, por isso, algumas vezes assim fui classificado por meus amigos: o mesmo jeito simplório que dela brota. Alguns deles não entendiam como é possível acomodar opostos e continuar a ser feliz.

É impossível querer ser diferente, se as raízes o agarram ao chão, de tal forma devastadora, que não permitem que seus passos vão além da rua de chão batido, do valão Liberdade, do colégio Marcílio Dias, da Praça do Sabiá, dos picolés do Barrosinho e do Roldão, dos jogos do Liberdade Esporte Clube nos fins de semana, das festas juninas da escola, do caxambu batido em caixas de sabão na esquina da minha rua, dos passeios de bicicleta diante da casa das meninas bonitas, das noites quentes pontilhadas de vaga-lumes.

Andei muito – e ainda ando – por esse vasto mundo. Nem tanto como queria, mas sempre adequado ao que posso e ao que minha curiosidade desafia. Mas minha vila ainda pulsa dentro de mim, como a me lembrar que sou, apesar de todo o tempo acumulado na vida, aquele menino simples, um tanto ingênuo, de olhar encantado pelo visível, de pés no chão, a correr, sem camisa e de calção, pela vastidão da Liberdade da minha infância.

E disso tenho o maior prazer!

Por isso tomei a liberdade de lhe dizer.


A Noite Estrelada
Vincent Van Gogh, 1889, Noite estrelada (MOMA, Nova Iorque).

2 comentários:

  1. "Eu me lembro com saudade
    O tempo que passou
    O tempo passa tão depressa
    Mas em mim deixou
    Jovens tardes de domingo
    Tantas alegrias
    Velhos tempos
    Belos dias" (R.C.)

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    1. Foi bem assim mesmo. E você, primo, compartilhou essa vivência comigo. Abraços!

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