Era uma
noite morna de domingo na vila. A missa havia acabado há bem umas duas horas, e
a Rua Coronel Alfredo Portugal e a Praça Antônio Guimarães estavam cheias das
mesmas pessoas de todos os dias anteriores, de todos os anos anteriores,
enquanto a vila teve suas lavouras de milho, arroz, café, cana de açúcar; seu comércio
pulsante; seus quebrantos e encantos. Como se fosse uma festa do interior.
Meus
avós Juquinha e Maína, pais da minha mãe, tinham sua casa diante da pracinha. Eu
estava lá na varanda, com meus dez-onze anos, olhando o movimento de pessoas
naquele vaivém que parecia não ter fim. Mesmo que fosse tudo diminuto, tudo bem
caipira, bem interiorano, aos meus olhos, contudo, era o mundo inteiro. Por essa
época, achava que a vila fora o início do mundo. Tudo partira dali. O resto era
o resto.
Lembro-me
de algumas meninas da minha idade, com belos vestidos de domingo, a passear
pela praça, naquele instante.
Até que
se ouviu um grito de alerta, para um dos mais terríveis acontecimentos
possíveis entre nós:
-
Cachorro doido!
Nós tínhamos
aprendido com as histórias que nos contavam que cachorro doido era das piores
coisas que poderiam ocorrer em nossa comunidade. Uma mordida de cachorro doido
era sinal de uma dolorosa morte anunciada, o padecente amarrado a uma árvore,
espumando pela boca, sem poder ver água, agonizando até a morte, gritando
desatinadamente. Não havia remédio possível. Eu mesmo tinha – e ainda tenho – a
imagem de um homem qualquer, que nem existiu, amarrado, o corpo todo suado, a
vociferar imprecações, espumando, com os olhos injetados, nos estertores da
morte. Cachorro doido foi o meu maior medo.
A rua
e a praça se esvaziaram rapidamente. Eu corri para minha casa, dois quarteirões
além, levando a notícia de que um cachorro doido aparecera do lado do Elias
Nunes e vinha em direção ao centro da vila.
Meu pai
fechou toda a casa, recomendou que não saíssemos, pegou sua garrucha cano
duplo, carga reforçada, e foi para o terreiro, pois havia a notícia de que o amaldiçoado
viera pela rua de trás.
O quintal
da casa do tio Nalim, que dava para tal rua, ficava aberto até que ele
colocasse sua caminhonete na garagem. O cachorro por ali entrou.
Havia
uma lua cheia a iluminar a pouca iluminação da vila, cujas lâmpadas, por essa
época, pareciam tomates maduros.
Meu pai
vislumbrou o vulto do cão próximo à garagem, construída em madeira. Mirou no
bicho e disparou aquele tirambaço que uma garrucha cano duplo, carga dobrada,
faria numa noite morna de domingo numa vila pacata do interior.
O cachorro
ganiu de dor e saiu correndo.
Meu pai
entrou em casa e nos disse que acertara o bicho no vazio, uma região que fica
entre o final das costelas e a anca. E pediu que ninguém jamais dissesse que
havia sido ele o autor do tiro. Não queria que soubessem que tinha uma arma em
casa, num tempo que era comum ter arma em casa.
Ficamos
todos quietos, diante das especulações de quem teria desferido tal potente – ou barulhento
– tiro naquela noite morna.
No dia
seguinte, encontraram o cão morto no além do valão Liberdade, depois da ponte
perto da fábrica de manteiga do Libelton Boechat, já dentro das terras do Zé
Doença.
Meu pai matou o cachorro doido e o medo terrível que eu tinha de ser mordido por um bicho excomungado desses, que nos metia em um sofrimento bem próximo do que padeceriam as almas condenadas ao fogo eterno do inferno, segundo a crença comum.
Fomos criados com os mesmos medos. Muito bom.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirNão sei se teria o mesmo significado, mas aqui, nos anos após a Grande Guerra, dizíamos: Cuidado que lá vem cão raivoso!
ResponderExcluirHavia até um professor primário, professor Roque, que tinha fama e proveito de ser muito mentiroso. Contava ele, que um dia estava em cima da ponte de Santa Clara, quando gritaram: fujam que lá vai cão raivoso!
Eu nem pensei duas vezes, dia ele, atirei-me de cabeça para o rio, mas a meio lembrei-me que tinha um chapéu novo, dei tamanho golpe de rins que caí na água, de pé e nem o chapéu molhei.
Também aqui dizemos cão raivoso. Era o cão acometido de hidrofobia. Esse professor Roque era supimpa numa mentira. Hahah
ExcluirÉ assim se faz a lenda: um medo e um pai herói.
ResponderExcluirQue belo texto. Que foto maravilhosa. E você, aqui, agora, Saint-Clair, revelando a autoria de gesto heroico aos olhos dos meninos e aos olhos de todos os que estavam por ali naquela noite, depois da missa, num tempo que já vai distante...
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