17 de novembro de 2015

NAQUELE TEMPO


Lembro-me de que brincávamos de carro-de-boi de sabugo de milho. Os sabugos eram os bois. O carro, alguma pedra que amarrávamos aos sabugos, que eram candiados como qualquer boi de carro de verdade. Vem, Soberbo! Força, Fumaça!
As trilhas eram traçadas no chão batido e encontravam alguma dificuldade no monte de areia em que os bois deviam subir, puxando a carga imensa que colocávamos sobre o carro: um caroço de manga seco, um cavaco qualquer de pau, pedaços de telha antiga defumada pelo uso, algumas folhas que fingiam ser a última colheita de uma lavoura imaginária, olhos-de-boi que depois serviam a curar terçóis, a que sempre estávamos sujeitos.
Não foram poucas as vezes em que assim brincamos. Sobretudo na fazenda do tio Aurélio, no Jacó, com meus primos Délbio e Zé Luís, filhos dele, e Zé Fábio, que sempre estava na corriola conosco. Com tanto menino junto, algumas vezes havia encrenca, sobretudo porque os dois Zés sempre foram briguentos. Mas tudo não passava de minguados minutos, e a brincadeira voltava a reinar entre a turma.
Tio Aurélio era um tio bonachão, extremamente bem-humorado, e não esquentava a cabeça com nossas peraltices ou desavenças passageiras. E sempre tinha uma boa saída, para não tomar decisão alguma diante de bobagens infantis. Por vezes, Délbio ia reclamar de certa atitude do irmão:
- Pai, o Zé Luís tá implicando com a gente!
Ele, com o vozeirão de que era possuidor, indagava sério:
- Com a gente ou com os outros?
- Com a gente!
- Ah, pensei que fosse com os outros!
E não fazia absolutamente nada. Se a resposta fosse “com os outros”, ele mudava sua frase:
- Ah, pensei que fosse com a gente!
E tudo continuava na mesma. Ele é que não iria envolver-se em briga de meninos, que, instantes depois, estariam brincando, como se nada houvesse acontecido.
Já tia Toninha, irmã de minha mãe, tinha alvará expresso para aplicar o corretivo necessário, durante a estada em sua casa. Eu mesmo nunca levei catiripapos dela. Não sei o peso que tinha seu braço. Apenas uma vez peguei castigo coletivo, por conta de armações normais de criança.
E jogávamos muita bola! Havia na fazenda um grande terreirão para a secagem do café, que meu tio plantava, com o piso em barro vermelho batido e ressecado. Se chovesse não podíamos andar pelo terreirão, a fim de não deformar seu chão plano. Em tempo seco e sem o café espalhado, sempre havia uma pelada entre meninos ou entre adultos. Ali se formou o time do Soca Terreiro, que uma vez por ano disputava o torneio rural, de curtíssima duração.
Também brincávamos com as chuvas torrenciais de verão, fazendo barragens nas sarjetas e soltando barcos de papel na enxurrada. Ou tomando banho nas bicas que se formavam da água que descia forte dos telhados das casas baixinhas da vila.
Nas noites manchadas de estrelas e vaga-lumes, corríamos para esconder na brincadeira de pique ou de siliprina (palavra que nunca encontrei em nenhum dicionário), de mocinho e bandido.
Pulávamos o muro do campo de futebol para também fazer nossas peladas, ou outra brincadeira que envolvesse muita criança. E alguns aproveitavam para roubar laranja no quintal do tio Chiquito, fronteiro ao campo, ao final das peladas.
Sobre as calçadas, ou nas varandas das casas, ocorriam ferrenhas partidas de futebol de botão, com campeonato organizado, botões famosos a lembrar jogadores dos principais times do Rio de Janeiro. Às vezes ocorriam negociações, e determinado botão passava de um a outro menino, por troca ou por compra. Andei pagando alguns com os pés de moleque que minha mãe fazia.
Nas noites de sábado e domingo, banho tomado, cabelo penteado, saíamos a passear pela Rua Coronel Alfredo Portugal, da esquina com a Rua Coronel Antônio Olímpio de Figueiredo, nome do meu bisavô, em direção à Praça Antônio Guimarães, a antiga Praça do Sabiá. E aproveitávamos para paquerar as meninas, no circuito desta balada inocente e interiorana.
Não tínhamos consciência de que cresceríamos, andaríamos por caminhos distantes e estranhos, enfrentaríamos os desafios que a vida nos imporia, com toda a certeza. Brincávamos e nos divertíamos como meninos, sem atentar para o mundo estranho que estaríamos construindo.
Mas, pelo que me é dado relembrar, era assim, naquele tempo!

Cândido Portinari, Futebol em Brodósqui, 1935 (em estudosavancadosinterdisciplinares.blogspot.com).

4 comentários:

  1. Este texto fez-me lembrar muito da minha infância.
    Adorei a maneira inteligente do Pai resolver as zangas da miudagem!...
    Lindo texto.

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  2. Saudade daquele tempo. Éramos felizes! Inventavamos nosdos próprios brinquedos!

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  3. Saudades deste tempo como foi bom mas hoje não é mais assim são todos com cada um no celular que nem tem infância abraço a todos todos

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