(Para meu irmão Gutenberg.)
Estamos pedalando pela estrada de chão batido, seco de
um verão medonho, e pensando no refrigerante que iremos beber, assim que
estivermos de volta.
Às vezes, meu pai nos mandava ir a Apiacá, no Espírito
Santo, para comprar peças para suas bicicletas, que ele mesmo gostava de
consertar, reconsertar, arrumar, rearrumar, como um exercício monástico para
sobreviver na pachorra da nossa vila. Não havia muita coisa que fazer lá. Ele tinha
uma pequena venda de secos-e-molhados, como se dizia, na esquina da rua
principal, e passava boa parte do tempo, atrás do balcão, olhando a falta de
movimento que era o mote comum da vida. Também gostava de pescar no Rio
Itabapoana, divisa natural entre o Rio de Janeiro e o território capixaba. E se
utilizava sempre da bicicleta inglesa Humber, seu xodó maior, para chegar até
seus pesqueiros prediletos.
E nos mandava – a mim e a meu irmão mais novo, Gute – à
vila do outro lado do rio, para comprar a relação de peças, escrita num
papelucho qualquer: cônicos, esferas, lonas para o freio, raios das rodas,
câmaras de ar.
Gostávamos da aventura que demandava pedaladas
vigorosas pelos quase dez quilômetros de poeira, numa estrada quase sem
veículos motorizados. Era frequente não encontrar com nenhum automóvel durante
o trajeto. E o único obstáculo que se apresentava, logo à saída de Carabuçu, abstraído
o sol escaldante, era o Morro do Marta, com seu chão de saibro e seu aclive
acentuado, que não nos permitia vencê-lo sem que nos desapeássemos das
magrelas, então empurradas morro acima.
Contudo, sempre que papai nos dava tal missão, a
exigência que fazíamos – se é que se pudesse chamar exigência a um pedido
candente – era que nos desse dinheiro para um Crush ou um Grapette na venda do
seu Jáder, ainda do lado fluminense, quase na boca da ponte, antes da travessia
do rio por uma aparentemente comprida ponte de madeira. Anos depois, passando
de automóvel sobre ela, é que descobri que nem tão comprida assim é ela.
Posso dizer mesmo que a maior recompensa pelo serviço,
a que não podíamos fugir, era aquele momento de frescor que nos descia garganta
abaixo, em generosos goles, sob a árvore gigantesca que sombreava quase toda a
encruzilhada e boa parte da venda. Talvez eu nunca tenha provado um sabor tão
inesquecível.
Por isso é que, mais esta vez, meu irmão e eu estivéssemos
ansiosos por cumprir logo a missão dada: chegar rápido a Apiacá, comprar a
encomenda e voltar de carreira até a venda do seu Jáder. O roteiro era meu pai
quem traçava, e dele não escapávamos. No entanto, só nós desfrutávamos deste
prazer.
Seu Jáder era um homem alto, magro, óculos de aro
redondo, sempre de suspensório, que me parecia muito elegante e educado. Morava
por ali mesmo, numa casa alta, com alpendre na frente. A venda, imóvel apartado
da casa, era uma construção baixa, de fachada larga, como as boas vendas de
beira de estrada do interior, com seu sortimento de tudo de que o povo das
redondezas necessitava. Sob a sombra da árvore, ela se mantinha fresca para o
verão que abrasava lá fora. Seu Jáder tinha refrigerador largo, daqueles bem
antigos, para suas bebidas. Com frequência, contudo, por essa época, os
comerciantes que vendiam bebidas usavam colocá-las num buraco na terra, que
enchiam com sal grosso e serragem. Aí parecia que ficavam geladas. Pelo mesmo,
era a sensação que tínhamos. E o Crush e o Grapette geladinhos do seu Jáder
eram um alívio para nossa sede.
Por isso é que eu e meu irmão gostávamos tanto deste
momento. Como meninos pobres, não tínhamos o hábito de tomar refrigerantes. E aquela
viagem era a oportunidade para que saciássemos uma vontade infantil tão barata
e corriqueira, mas que impregnou na nossa memória como uma placa de gelo
eterno.
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Antiga garrafa de Crush (imagem em produto.mercadolivre.com.br). |
Bela e comovente lembrança.
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