21 de agosto de 2014

PEDALANDO POR UM REFRIGERANTE

(Para meu irmão Gutenberg.)


Estamos pedalando pela estrada de chão batido, seco de um verão medonho, e pensando no refrigerante que iremos beber, assim que estivermos de volta.

Às vezes, meu pai nos mandava ir a Apiacá, no Espírito Santo, para comprar peças para suas bicicletas, que ele mesmo gostava de consertar, reconsertar, arrumar, rearrumar, como um exercício monástico para sobreviver na pachorra da nossa vila. Não havia muita coisa que fazer lá. Ele tinha uma pequena venda de secos-e-molhados, como se dizia, na esquina da rua principal, e passava boa parte do tempo, atrás do balcão, olhando a falta de movimento que era o mote comum da vida. Também gostava de pescar no Rio Itabapoana, divisa natural entre o Rio de Janeiro e o território capixaba. E se utilizava sempre da bicicleta inglesa Humber, seu xodó maior, para chegar até seus pesqueiros prediletos.

E nos mandava – a mim e a meu irmão mais novo, Gute – à vila do outro lado do rio, para comprar a relação de peças, escrita num papelucho qualquer: cônicos, esferas, lonas para o freio, raios das rodas, câmaras de ar.

Gostávamos da aventura que demandava pedaladas vigorosas pelos quase dez quilômetros de poeira, numa estrada quase sem veículos motorizados. Era frequente não encontrar com nenhum automóvel durante o trajeto. E o único obstáculo que se apresentava, logo à saída de Carabuçu, abstraído o sol escaldante, era o Morro do Marta, com seu chão de saibro e seu aclive acentuado, que não nos permitia vencê-lo sem que nos desapeássemos das magrelas, então empurradas morro acima.

Contudo, sempre que papai nos dava tal missão, a exigência que fazíamos – se é que se pudesse chamar exigência a um pedido candente – era que nos desse dinheiro para um Crush ou um Grapette na venda do seu Jáder, ainda do lado fluminense, quase na boca da ponte, antes da travessia do rio por uma aparentemente comprida ponte de madeira. Anos depois, passando de automóvel sobre ela, é que descobri que nem tão comprida assim é ela.

Posso dizer mesmo que a maior recompensa pelo serviço, a que não podíamos fugir, era aquele momento de frescor que nos descia garganta abaixo, em generosos goles, sob a árvore gigantesca que sombreava quase toda a encruzilhada e boa parte da venda. Talvez eu nunca tenha provado um sabor tão inesquecível.

Por isso é que, mais esta vez, meu irmão e eu estivéssemos ansiosos por cumprir logo a missão dada: chegar rápido a Apiacá, comprar a encomenda e voltar de carreira até a venda do seu Jáder. O roteiro era meu pai quem traçava, e dele não escapávamos. No entanto, só nós desfrutávamos deste prazer.

Seu Jáder era um homem alto, magro, óculos de aro redondo, sempre de suspensório, que me parecia muito elegante e educado. Morava por ali mesmo, numa casa alta, com alpendre na frente. A venda, imóvel apartado da casa, era uma construção baixa, de fachada larga, como as boas vendas de beira de estrada do interior, com seu sortimento de tudo de que o povo das redondezas necessitava. Sob a sombra da árvore, ela se mantinha fresca para o verão que abrasava lá fora. Seu Jáder tinha refrigerador largo, daqueles bem antigos, para suas bebidas. Com frequência, contudo, por essa época, os comerciantes que vendiam bebidas usavam colocá-las num buraco na terra, que enchiam com sal grosso e serragem. Aí parecia que ficavam geladas. Pelo mesmo, era a sensação que tínhamos. E o Crush e o Grapette geladinhos do seu Jáder eram um alívio para nossa sede.

Por isso é que eu e meu irmão gostávamos tanto deste momento. Como meninos pobres, não tínhamos o hábito de tomar refrigerantes. E aquela viagem era a oportunidade para que saciássemos uma vontade infantil tão barata e corriqueira, mas que impregnou na nossa memória como uma placa de gelo eterno. 

Antiga garrafa de Crush (imagem em produto.mercadolivre.com.br).

Um comentário: