A fama de Nequinha Capador varava os
limites do quarto distrito de Bom Jesus do Itabapoana, a vila de Liberdade.
Vinha da Serra da Capetinga, cortava terras da Forquilha, do Jacó, passava pela
Vala, pelo Coleto, adentrava as ruas da vila, daí partindo em direção às terras
da Fazenda da Liberdade, da do Dr. César Ferolla, ou desviava para o Chico
Anacleto, o Paulo Barroso. Adentrava depois o Mutum, subia até a Serrinha,
rodeava a Sesmaria, variava para o Corgo Seco, e amenizava, na volta, já
próximo ao Espírito Santo, nas imediações do Jáder Figueiredo. Como veem era
uma fama descomunal, abusada, ostentatória. Por isso ninguém deixava de
contratar os serviços técnicos de Nequinha Capador, quando o assunto era
emascular qualquer bicho doméstico: boi, porco, bode, dentre outros.
Alguém que se dispusesse a dividir a
praça em negócio de castração de bicho estaria fadado ao fracasso. Como ocorreu
com um brancarrão alto, bigode de ponta virada, que apareceu na vila pelos
meados da década de cinquenta. Pois desistiu do serviço e passou a criar pato
numa lagoa próxima à fazenda do Nilo Souza.
As mãos de Nequinha pareciam feitas
para o serviço: suaves, quando precisavam ser suaves; vigorosas, quando o
serviço assim o requeria.
E não cobrava barato o Nequinha.
Serviço seu tinha o devido valor, a depender do tamanho, da raça e da brabeza
do bicho a ser capado. Não fazia era distinção da extensão da propriedade do
dono do bicho. Fosse ele enricado ou por enricar, o que botava preço no serviço
era o bicho e suas artimanhas.
Sempre, na vida de qualquer vivente,
há um porém, há um contratempo, um senão. E não podia deixar de ser diferente
na de Nequinha.
Chamado a um serviço na Fazenda da
Matinha, Nequinha foi devidamente avisado de que seu paciente era um garrote
enquizilado, cheio de nó pelas costas. Ele, que nunca demonstrou medo de nada,
disse para o emissário da fazenda:
- Deixa comigo, conheço meu ofício,
sei o que fazer.
No dia marcado, chegou na sua mula
baia garbosa e foi logo indagando do paciente, onde estava, como é que estava,
coisas e loisas.
O bicho estava isolado em uma divisão
do curral, previamente limpa e preparada para a castração. Parecia ter sido
avisado pelos deuses dos animais do que lhe iria acontecer. Ou talvez, quem
sabe, a fama exorbitante de Nequinha já tivesse chegado aos ouvidos do garrote?
Nequinha, para mostrar superioridades
e segurança, olhou o bicho nos olhos, no que foi correspondido de forma
ameaçadora e fuzilante. Nesse instante, a convicção de Nequinha experimentou
uma friagem esquisita. Para espantar aquele mau-olhado, raspou a goela, pediu
uma dose da afamada cachaça produzida na fazenda, pegou os instrumentos do
ofício e entrou no cercado onde estava o futuro castrado.
Entrou jeitoso, cheio de disfarces, na
tentativa de iludir o pobre animal. O bicho bufou, raspou o casco no chão, ao
que Nequinha respondeu com aboios suaves para amansá-lo. O bicho negaceou,
Nequinha negaceou, e ficaram os dois se estudando. Quando o castrador, com
tapinhas leves na anca do garrote, resolveu dar a volta por trás, no intuito de
verificar o tamanho do material a ser extirpado ou aniquilado, por incrível que
possa parecer, levou um coice com tal peçonha em suas partes, que foi lançado
contra a cerca do lado oposto. Com um grito lancinante, ficou estendido no chão,
o bicho com os olhos fixos nele, bafo quente nas narinas, a baba escorrendo da
boca.
O pessoal da fazenda puxou Nequinha
por debaixo da tábua do curral, ele desfalecido pela dor, o corpo na
consistência de maria-mole, e o depositou sobre a prateleira dos latões de
leite. O fazendeiro mandou o filho correr a casa para pegar o álcool canforado,
com o qual trouxe Nequinha de volta ao juízo normal. O homem gemia, que gemia,
e ficou deitado ali por um bom tempo.
Por uma questão de bom senso, o
fazendeiro hospedou Nequinha por aquela noite na fazenda e mandou seu filho, na
manhã seguinte, levá-lo de caminhonete à cidade para consultar médico doutor de
gente, porque estava com preocupações profundas acerca da saúde do
profissional.
Examinado de norte a sul, de leste a
oeste, pelo doutor Valdir, teve o pior diagnóstico que um capador poderia ter
em toda a vida: o coice pestilento do garrote castrou Nequinha, deixando-o
roncolho para o resto de seus dias, sem possibilidades de produzir novos
capadores em terras de Liberdade.
Deliciosa história. A tua maneira de escrever é sublime!
ResponderExcluirVou enviar o link deste conto para um amigo escritor que vai adorar lê-lo, com toda a certeza.
Obrigado Saint-Clair. Aquele Abraço
Mais uma vez, obrigado, Moreirinhas! Fico feliz de que gostas.
ExcluirEm boa hora, um amigo meu de longos anos - o Engenheiro Alfredo Moreirinhas - sabendo da minha dedicação pela escrita, enviou-me este conto. É, de facto, um conto delicioso, com o condimento da narrativa ter um sabor direi que sertanejo no seu prosar, que empresta ao conto uma graciosidade e uma genuinidade que põe em destaque as virtualidades de escrita do autor.
ResponderExcluirOs ditados populares, são a soma da experiência e sabedoria dos povos e que passam de geração em geração. Diz um ditado popular português que "quem com ferros mata, com ferros morre". Neste caso, a balançar entre o humor e o drama, bem se pode afirmar que o capador foi capado. E, nesta prosa tão singular, o realce à beleza do conto e à inspiração do escritor. Parabéns ao autor. Obrigado ao amigo Alfredo que mo deu a conhecer.
Quito Pereira
Obrigado pelas palavras, Quito! Aqui, nosso dito é quase isso: quem com ferro fere, com ferro será ferido, que os trocistas de plantão adaptaram para "quem confere ferro, com ferro será conferido". Um abraço.
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