18 de outubro de 2013

NEQUINHA CAPADOR

A fama de Nequinha Capador varava os limites do quarto distrito de Bom Jesus do Itabapoana, a vila de Liberdade. Vinha da Serra da Capetinga, cortava terras da Forquilha, do Jacó, passava pela Vala, pelo Coleto, adentrava as ruas da vila, daí partindo em direção às terras da Fazenda da Liberdade, da do Dr. César Ferolla, ou desviava para o Chico Anacleto, o Paulo Barroso. Adentrava depois o Mutum, subia até a Serrinha, rodeava a Sesmaria, variava para o Corgo Seco, e amenizava, na volta, já próximo ao Espírito Santo, nas imediações do Jáder Figueiredo. Como veem era uma fama descomunal, abusada, ostentatória. Por isso ninguém deixava de contratar os serviços técnicos de Nequinha Capador, quando o assunto era emascular qualquer bicho doméstico: boi, porco, bode, dentre outros.

Alguém que se dispusesse a dividir a praça em negócio de castração de bicho estaria fadado ao fracasso. Como ocorreu com um brancarrão alto, bigode de ponta virada, que apareceu na vila pelos meados da década de cinquenta. Pois desistiu do serviço e passou a criar pato numa lagoa próxima à fazenda do Nilo Souza.

As mãos de Nequinha pareciam feitas para o serviço: suaves, quando precisavam ser suaves; vigorosas, quando o serviço assim o requeria.

E não cobrava barato o Nequinha. Serviço seu tinha o devido valor, a depender do tamanho, da raça e da brabeza do bicho a ser capado. Não fazia era distinção da extensão da propriedade do dono do bicho. Fosse ele enricado ou por enricar, o que botava preço no serviço era o bicho e suas artimanhas.

Sempre, na vida de qualquer vivente, há um porém, há um contratempo, um senão. E não podia deixar de ser diferente na de Nequinha.

Chamado a um serviço na Fazenda da Matinha, Nequinha foi devidamente avisado de que seu paciente era um garrote enquizilado, cheio de nó pelas costas. Ele, que nunca demonstrou medo de nada, disse para o emissário da fazenda:

- Deixa comigo, conheço meu ofício, sei o que fazer.

No dia marcado, chegou na sua mula baia garbosa e foi logo indagando do paciente, onde estava, como é que estava, coisas e loisas.

O bicho estava isolado em uma divisão do curral, previamente limpa e preparada para a castração. Parecia ter sido avisado pelos deuses dos animais do que lhe iria acontecer. Ou talvez, quem sabe, a fama exorbitante de Nequinha já tivesse chegado aos ouvidos do garrote?

Nequinha, para mostrar superioridades e segurança, olhou o bicho nos olhos, no que foi correspondido de forma ameaçadora e fuzilante. Nesse instante, a convicção de Nequinha experimentou uma friagem esquisita. Para espantar aquele mau-olhado, raspou a goela, pediu uma dose da afamada cachaça produzida na fazenda, pegou os instrumentos do ofício e entrou no cercado onde estava o futuro castrado.

Entrou jeitoso, cheio de disfarces, na tentativa de iludir o pobre animal. O bicho bufou, raspou o casco no chão, ao que Nequinha respondeu com aboios suaves para amansá-lo. O bicho negaceou, Nequinha negaceou, e ficaram os dois se estudando. Quando o castrador, com tapinhas leves na anca do garrote, resolveu dar a volta por trás, no intuito de verificar o tamanho do material a ser extirpado ou aniquilado, por incrível que possa parecer, levou um coice com tal peçonha em suas partes, que foi lançado contra a cerca do lado oposto. Com um grito lancinante, ficou estendido no chão, o bicho com os olhos fixos nele, bafo quente nas narinas, a baba escorrendo da boca.

O pessoal da fazenda puxou Nequinha por debaixo da tábua do curral, ele desfalecido pela dor, o corpo na consistência de maria-mole, e o depositou sobre a prateleira dos latões de leite. O fazendeiro mandou o filho correr a casa para pegar o álcool canforado, com o qual trouxe Nequinha de volta ao juízo normal. O homem gemia, que gemia, e ficou deitado ali por um bom tempo.

Por uma questão de bom senso, o fazendeiro hospedou Nequinha por aquela noite na fazenda e mandou seu filho, na manhã seguinte, levá-lo de caminhonete à cidade para consultar médico doutor de gente, porque estava com preocupações profundas acerca da saúde do profissional.

Examinado de norte a sul, de leste a oeste, pelo doutor Valdir, teve o pior diagnóstico que um capador poderia ter em toda a vida: o coice pestilento do garrote castrou Nequinha, deixando-o roncolho para o resto de seus dias, sem possibilidades de produzir novos capadores em terras de Liberdade.

O reino animal estava vingado!

4 comentários:

  1. Deliciosa história. A tua maneira de escrever é sublime!
    Vou enviar o link deste conto para um amigo escritor que vai adorar lê-lo, com toda a certeza.
    Obrigado Saint-Clair. Aquele Abraço

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    1. Mais uma vez, obrigado, Moreirinhas! Fico feliz de que gostas.

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  2. Em boa hora, um amigo meu de longos anos - o Engenheiro Alfredo Moreirinhas - sabendo da minha dedicação pela escrita, enviou-me este conto. É, de facto, um conto delicioso, com o condimento da narrativa ter um sabor direi que sertanejo no seu prosar, que empresta ao conto uma graciosidade e uma genuinidade que põe em destaque as virtualidades de escrita do autor.

    Os ditados populares, são a soma da experiência e sabedoria dos povos e que passam de geração em geração. Diz um ditado popular português que "quem com ferros mata, com ferros morre". Neste caso, a balançar entre o humor e o drama, bem se pode afirmar que o capador foi capado. E, nesta prosa tão singular, o realce à beleza do conto e à inspiração do escritor. Parabéns ao autor. Obrigado ao amigo Alfredo que mo deu a conhecer.
    Quito Pereira

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    1. Obrigado pelas palavras, Quito! Aqui, nosso dito é quase isso: quem com ferro fere, com ferro será ferido, que os trocistas de plantão adaptaram para "quem confere ferro, com ferro será conferido". Um abraço.

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