26 de outubro de 2012

CONTO DE CARABUÇU


Era sábado. A tarde vinha chegando cheia de negaças, um tanto enfarruscada, o céu empedrado de nuvens escuras. O solão brabo de doer nas vistas só tinha dado as caras até o meio-dia, passando, então, a brincar de pique-esconde com a montoeira de nuvens que enchiam a vastidão.
Antõi Romualdo vinha remancheando, chegando junto com a tarde, lá das bandas do Zé Doença, com a nova precata preta, sola de corda trançada, enganchado no arreio no lombo da sua mula ruana. A última botina ringideira que comprara na venda do Nalim apertou demais os calos encravados na cacunda dos dois dedos mindinhos. Por isso ele a berganhou pela precata.

Quando passou na pontezinha em riba do valão Liberdade, assuntou um pouco lá embaixo e divulgou um vulto que se escondia bem embaixo dos pranchões. Pispiou entre as gretas das tábuas, mas não conseguiu atinar para quem estava no debaixo do chapéu de palha de aba larga. Só sentiu que era um homem magro, pezão imenso afundado na água clara do corgo. Mas não desconfiou também de nada, que essa não era sua função nessa vida. Talvez fosse apenas o Chico Apara-o-ovo fazendo suas necessidades.
E seguiu na marcha batida da mula até chegar à cocheira do Jair Passarelo, onde ia deixá-la aos cuidados do profissional de cascos e ferraduras.

Cumprimentou o amigo, levantando o chapéu de feltro, em sinal de respeito, e disse que ia até a barbearia do Nego Souza aparar a crina, rapar a barba rala e ajeitar o bigode amontoado na platibanda do beiço, em molde de cantor de samba-canção.
No trajeto até a barbearia falou com um e com outro, levantou o chapéu para algumas senhoras e disse para o Argemiro, atrás do balcão da venda, que depois chegaria até lá, para as compras da semana.

Na barbearia, Nego Souza, prosa que só ele, puxou conversa como sempre fazia com cada freguês que se assentava sobre sua cadeira de barbeiro velha de muitos janeiros. Enquanto afiava a navalha, já pronto a romper um eito daquela penugem fina que sujava a cara do Antõi Romualdo, perguntou pela saúde de todos os outros Romualdos, que viviam para os lados do Doutor César Ferolla, que era como a gente nomeava as terras à direita do valão Liberdade, que chegavam até a subida da serra de onde vinha a água para a vila.
- Tá tudo bão, amigo Nego Souza! O piorzinho é esse seu criado aqui, que não tá aguentando uma gata pelo rabo, pro mode de um escadeiramento nos quartos, advindo de um servicinho de furar cacimba lá na propriedade. Com esse tempo seco, a terra fica mais dura que pé de pau. E cada picaretada retine lá no meio do lombo do cristão, que é um estrupício só! Depois, vou até chegar na farmácia do Zé, pra ver se ele tem um sanativo pra isso.

Quando o barbeiro terminou sua arte de tesouras e navalhas, perguntou para o freguês, como sempre fazia ao final da barba escanhoada:
- Arco, tarco ou água verva?

- Põe arco, amigo, que é pra desinfetar bem!
E ele enchia a concha da mão com uma boa talagada de álcool, que, aplicado imediatamente na pele cabocla rachada de sol e recém-barbeada, fazia o cristão apitar como locomotiva maria-fumaça. Pior do que isso, só quando, ainda por cima, vinha com a pedra-ume a estancar os poros arrebentados pela navalha já um tanto gasta pelo uso. Era praticamente uma tortura consentida!

Um pouco mais tarde, depois de tomar uma injeção receitada pelo Zé da Farmácia, para sanar a ziquizira do lombo doído, ia para a venda do Argemiro, onde faria as compras da semana e se juntaria aos outros homens, para as conversas miúdas repletas de causos, anedotas, chistes, pilhérias, com que zombavam uns dos outros e aliviavam as tensões da semana curvada no cabo da enxada, na lida do gado, no trato dos animais.
Aos poucos, a vila ia tomando um borbotão de gentes vindas de todas as bandas, as ruas ficavam lotadas, com o trânsito dividido entre cavaleiros e pessoas a passear em passos lentos, sem a pressa que anos depois iria infernizar a vida de todos.

Todas as vendas e botequins da vila ficavam apinhados de gente, sobretudo de trabalhadores rurais, posseiros e pequenos proprietários do entorno, numa repetição moderna das velhas feiras das cidades medievais, com muita gente comprando mantimentos para a subsistência da semana e tendo seu momento de folga e de lazer simplório.
Dependendo da época, ouvia-se caxambu na esquina onde ficava a venda do Argemiro. Homens rudes do campo, sentados sobre caixotes de sabão, batucavam e cantavam versos de velhas memórias do tempo do onça. Por vezes, aparecia alguém com um violão a dar harmonia àquele canto rústico. Alguns deles, talvez a maioria, viravam goela abaixo talagadas de pinga rebatidas por nacos de carne-seca crua, punhadinhos de farinha jogados à boca com a concha da mão, fatias de salame. E davam gargalhadas sonorosas a cada piada, a cada causo engraçado. E cuspiam grosso no chão o travo da cachaça forte.

Antõi Romualdo e todos os demais estavam misturados a toda essa gente que fazia da vila de Carabuçu um lugar cheio de vida, que parecia resumir no interior do estado o minúsculo paraíso da singeleza do viver.
Chegadas as dez horas da noite, voltava o homem a seu lugar de pouso, com o céu já mudado por um vento morno, sem a chuva anunciada, que traria certo alívio para a seca impertinente. Havia uma profusão de estrelas a pontilhar a vastidão celeste, indicando a cada um o caminho do retorno a casa.

E Antõi Romualdo, livre das minúsculas convenções sociais da vila e aliviado da dor na cacunda pela injeção milagrosa do Zé, tirava a precata que, mesmo assim, ainda lhe apertava os calos, jogava-a no saco de aniagem na garupa da mula e seguia feliz com os pés tomando a fresca da noite.
Qualquer coisiquinha à toa era de muita serventia para aumentar a felicidade daquele homem simples.

Van Gogh, Noite estrelada, 1889 (em pt.wikipedia.com).

Um comentário:

  1. Eu fiquei emocionado com a belezura da escrita e a singeleza de "nosso interior. Muito bom.

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