8 de junho de 2025

UTOPIA*

Eu quero uma casa no canto

De um lugar qualquer

De um jardim sofrido

No fim de uma rua insólita

Eu quero me esconder do mundo

Viver à margem do tiroteio

Do golpe cibernético

Do esculacho do meliante

Do imposto escorchante

Da política comezinha

 

Eu quero uma casa se tanto

Num canto qualquer

Ou um mocambo

Em que encontre

A paz e o sossego

E um pouco de água fresca

Para abrandar o sofrer.

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*Motivado pela canção Casa no campo, de Tavito e Zé Rodrix.


                                                Imagem em pinterest.com


21 de maio de 2025

MAIS UM OUTONO

Tantos outonos

Têm passado por mim

E todos me deixam tonto.

Tenho pelo outono

Uma bonomia

Que não nutro

Pelas outras estações.

Na estação em que me ponho

Espero a passagem do outono

Como se fosse um abono

Pelas outras que virão

A cada ano.


Tarde de outono (foto do autor).


18 de abril de 2025

REMORSO


- Remorso, moço, é um troço embaraçoso que atravessa o peito da gente como uma flecha encastoada bem no meio do coração. Digo isso, porque penso agora numa tia, que passou parte da vida de casada implicando com meu tio e o seu gosto de beber cachaça, jogar carteado e torcer pelo Fluminense, e depois ficava diante da tevê, nos jogos do Tricolor, os olhos marejados d’água, assim que ele se finou. Rigorosamente ela nem sabia para que lado torcer, mas gastava os noventa minutos, incluindo o intervalo e os acréscimos que dá o juiz, imóvel na frente do aparelho. E passava todo o tempo da partida com os olhos fincados na tela, como se o procurasse, em vão, entre os torcedores.

Tão logo o jogo acabava, ela ia para frente da imagem de São Judas Tadeu, que era o santo da devoção dele, embora nunca tenha entrado numa igreja, a não ser quando se casou há não sei quantos anos, e lá, olhando fixo os olhos da imagem, fazia seus pedidos, suas orações, para que aquele remorso se findasse, como se finou seu marido, meu tio de muito boa lida com toda gente, que morreu dormindo como um passarinho, na mais santa paz. E acho que também pedia para que, caso fosse digna de misericórdia, se finasse tal qual ele mesmo, de modo a purgar esse remorso que enchia seu coração de dor e de tristeza.

Certa vez, sua filha mais nova, que, por não se ter casado, ainda morava com ela, a viu mexendo numas camisas antigas dele, nas quais passava as mãos como se as acarinhasse. Até cheirar, ela cheirou. E encostou a fralda da camisa no seu rosto. Essa filha, minha prima, depois me contou isso e ficou imaginando o que se passava com a mãe. No fundo, bem lá no fundo, ela desconfiava das razões, porque foi testemunha das malquerenças dela com o pai, sobretudo nos anos finais da convivência dos dois.

E o meu tio, enquanto vivia seus dias até a morte, levava na mesma batida de sempre o seu viver distraído, sem se amofinar com as caturrices dela, bebendo sua cachacinha de alambique, jogando seu baralhinho de fim de tarde e gritando gol, como se estivesse na arquibancada do campo de futebol, quando o seu time metia a bola na rede do adversário. E era o instante em que ela, de rabugice, às vezes quebrava um copo de propósito, deixava cair uma vasilha no chão, para atrapalhar aquele momento de prazer que ele tinha. Sobressaltado, ele virava a cabeça a indagar dela o que ocorrera, e ela, com certa antipatia, respondia entre dentes que não havia acontecido nada, que ele podia voltar a se preocupar com o seu jogo. Aliás o seu maldito jogo!

Na vila ninguém sabia disso, pois ele jamais reclamava com os amigos, mesmo que estivesse amuado. E, por vezes, descontava a chateação com uma tacada vigorosa na bola sete – morre não morre na boca da caçapa –, momento em que vibrava o taco como uma espada em duelo e aproveitava para pedir mais uma dose de calibrina, que sorvia de um só trago, estralando a língua ao final, seguido de uma careta.

Tempos depois, ao morrer numa madrugada sombria, sem um ai, sem um tremelique no corpo, deixou atrás de si uma espécie de alívio, nas palavras da minha tia, que não atinou naquele momento para as consequências da sua ausência. Penso mesmo que ela foi incapaz de perceber que o amava, ao mesmo tempo em que implicava com ele. É que ela era uma mulher enquizilada, de mal com a vida que tinha, repleta de apertos e privações, que sempre atribuía a ele e à sua vida um tanto insensata.

Daí pra diante, moço, o remorso remoía dentro dela feito uma verruma rombuda procurando furar madeira dura, numa gastura diária que parecia sem fim. Mas tinha a esperança de que, um dia, aquilo se aquietasse, e esse remorso se findasse, como tudo se finda na vida, como meu próprio tio se findou e ela também iria se findar.

Tempos depois, quando minha tia morreu, levou consigo um semblante serenado, como se meu tio tivesse passado, lá do além para onde foi, uma borracha definitiva sobre tudo o que sofreu com ela. Eu, que sabia de toda a história e estava presente no velório, senti isso: meu tio foi capaz de perdoá-la no momento derradeiro.

- E, por acaso, eu conheci essa sua tia, rapaz? Esse seu tio?

- Conheceu não, moço. E acho que só relatei isso para dizer como o remorso é esse troço embaraçoso na vida da gente.

John Williams Waterhouse, O remorso de Nero, 1878 (imagem em Wikimedia Commons).



14 de março de 2025

A VIZINHA NOJENTA

Nem todo dia ela fazia tudo sempre igual.

Às vezes acordava um pouco mais tarde e não punha um disco do Chico para rodar. Por vezes, Paulinho ou Monarco. Quem sabe Xangô da Mangueira, se a ancestralidade batesse forte. E mantinha seu estado de espírito saracoteante assim até o fim do dia. Se acordasse feminista, como nos tempos acadêmicos, tocava Teresa Cristina, ou Dona Yvone Lara. Se engajada e debochada, era Tom Zé. Se reivindicatória, Lecy Brandão, ou, mais contundente, Racionais MC's. No dia em que começava com Piazzola e sua María de Buenos Aires, estava virada no cão, perigava esfaquear aquela vizinha nojenta, que teimava com Bruno e Marrone ou outra dupla sertaneja de menor figuração. Havia dias de Tom e Vinícius, sobretudo às sextas-feiras com suas promessas enganosas de amores possíveis e conforto de corpos. Se punha a tocar Wando, a vizinha nojenta sabia que não teria sossego pela madrugada afora, com os gemidos e sussurros a ultrapassar a tênue parede de drywall, entre seus apartamentos. E a veria, insuportável, escancarar  o sorriso, na manhã seguinte, ao som de Sérgio Sampaio, pondo seu bloco na rua, ou Gonzaguinha, vivendo sem a vergonha de ser feliz. Quando, bem lá do fundo, subia um Ravi Shankar e seu sitar insinuante, com o odor de incensos a compor o ambiente, a atmosfera bicho-grilo que ocorria pela lua cheia, a cada mês, dava o tom da noite. Celibidache regendo o Bolero de Ravel indicava a sua disposição para uma faxina cronometrada, quase marcial, por todos os cantos da casa. Era de subir poeira pelos vãos das janelas e frestas de portas. Isso, contudo, não era frequente. Lá uma vez ou outra, apenas. Vésperas de carnaval, rolava Carlinhos Brown e Olodum. A vizinha nojenta sabia que ela estaria com aquele abadá surrado, do último Carnaval que passara em Salvador bebendo todas, beijando muito e suando em bicas. Dias bem diferentes eram de Bach e Vivaldi, introspectivos, ensimesmados, em que fazia uma reflexão ampla do estar no mundo e coisas que tais, sem jamais chegar a qualquer conclusão. Nesses dias, a vizinha nojenta nem notava sua presença no edifício, a não ser que o som estivesse alguns decibéis a mais. Invariavelmente pela época das festas juninas, só rolavam as sanfonas de Luiz Gonzaga, Sivuca e Dominguinhos. E se espalhava pelo corredor um cheiro doce de pamonha, bolo de milho e canjica. Quando o bicho estava pegando mesmo, ensurdecia o andar com Deep Purple e Black Sabbath, de baixar polícia no local a pedido de vizinhos de vários andares. A vizinha nojenta era a única a não reclamar, pois gostava daquela zoeira ensurdecedora. E era o só momento em que ela e a vizinha nojenta estavam acordes em gosto musical. Quando amanhecia de ressaca, a boca amarga, o horizonte fechado a cadeado, punha a tocar Maysa ou Marisa Gata Mansa. E, se fosse caso grave de dor de cotovelo, baixava a guarda totalmente com Nélson Gonçalves e Lupicínio Rodrigues, sem o mínimo constrangimento de revelar a idade.

Lá um dia pôs a rodar a Sonata Patética de Beethoven. A vizinha nojenta estranhou. Nunca ouvira tal som, nos tantos anos de convivência de portas laterais, no corredor daquele antigo edifício residencial, nas proximidades do centro da cidade. Mas teve de sair para ir ao banco. E atribuiu a música às esquisitices da moradora do quinhentos e três, como de hábito.

Ao voltar, ainda pegou, do início, a Marcha Fúnebre de Chopin, o que a deixou ainda mais preocupada. Entretanto entrou para seu apartamento e tocou a vida, com os afazeres domésticos e os estudos em linha, para o trabalho final do curso.

Ao final da Marcha, fez-se um silêncio sepulcral no pavimento.

Não muito tempo depois, a vizinha nojenta percebeu entrar sob o vão inferior da porta um filete de água cor de rosa. Abriu a porta, a fim de descobrir a origem do vazamento, e constatou vir da vizinha musical ao lado. Tocou a campainha algumas vezes, sem sucesso. Como a água continuasse a escorrer também pelo corredor, interfonou ao zelador, comunicando o problema.

Rapidamente fez-se um ajuntamento de vizinhos à frente da porta, a qual, por mais que se tentasse, não foi aberta.

O zelador providenciou a vinda de um chaveiro e solicitou a presença de testemunhas, para que pudesse entrar no apartamento.

Lá no fundo, na banheira a extravasar água cor de rosa, estava o corpo inerte da mulher, com os pulsos cortados a gilete.

Ironicamente foi a vizinha nojenta que providenciou os trâmites dolorosos para sepultar a vizinha musical, que morrera sem ninguém a se preocupar com ela, uma vida solitária à procura de possibilidades impossíveis.

Nesse dia, ela e a vizinha nojenta fizeram tudo bem diferente do que haviam feito durante aquele tempo de estranhamento.

                                Imagem em olhardigital.com.br.

8 de janeiro de 2025

TERCEIRA IDADE

Pela manhã 
O velho vê-se ao espelho. 
As sobrancelhas sobre os olhos míopes 
Lançam pelos aleatórios 
Em direções atópicas. 
Apara os pelos brancos das narinas, 
Rapa a barba rala 
Como a caatinga 
Que suja sua cara 
Com tufos bem antigos, 
Ajeita os parcos cabelos 
Que ainda sobrevivem distraídos 
Do mais restante do corpo, 
Passa o desodorante novo 
E vai para o calçadão da praia 
Andar com passos trôpegos 
Esbarrando nas pessoas 
Que caminham alheias, 
Inalando a maresia que sobe do mar 
E olhando os corpos jovens 
Das mulheres que se bronzeiam 
Sobre a areia. 
Volta para casa 
Sorve um copo d’água 
Toma um café amargo 
E sente recarregada sua bateria 
Para um dia novo.

Praia de Icaraí (foto do autor)