14 de março de 2025

A VIZINHA NOJENTA

Nem todo dia ela fazia tudo sempre igual.

Às vezes acordava um pouco mais tarde e não punha um disco do Chico para rodar. Por vezes, Paulinho ou Monarco. Quem sabe Xangô da Mangueira, se a ancestralidade batesse forte. E mantinha seu estado de espírito saracoteante assim até o fim do dia. Se acordasse feminista, como nos tempos acadêmicos, tocava Teresa Cristina, ou Dona Yvone Lara. Se engajada e debochada, era Tom Zé. Se reivindicatória, Lecy Brandão, ou, mais contundente, Racionais MC's. No dia em que começava com Piazzola e sua María de Buenos Aires, estava virada no cão, perigava esfaquear aquela vizinha nojenta, que teimava com Bruno e Marrone ou outra dupla sertaneja de menor figuração. Havia dias de Tom e Vinícius, sobretudo às sextas-feiras com suas promessas enganosas de amores possíveis e conforto de corpos. Se punha a tocar Wando, a vizinha nojenta sabia que não teria sossego pela madrugada afora, com os gemidos e sussurros a ultrapassar a tênue parede de drywall, entre seus apartamentos. E a veria, insuportável, escancarar  o sorriso, na manhã seguinte, ao som de Sérgio Sampaio, pondo seu bloco na rua, ou Gonzaguinha, vivendo sem a vergonha de ser feliz. Quando, bem lá do fundo, subia um Ravi Shankar e seu sitar insinuante, com o odor de incensos a compor o ambiente, a atmosfera bicho-grilo que ocorria pela lua cheia, a cada mês, dava o tom da noite. Celibidache regendo o Bolero de Ravel indicava a sua disposição para uma faxina cronometrada, quase marcial, por todos os cantos da casa. Era de subir poeira pelos vãos das janelas e frestas de portas. Isso, contudo, não era frequente. Lá uma vez ou outra, apenas. Vésperas de carnaval, rolava Carlinhos Brown e Olodum. A vizinha nojenta sabia que ela estaria com aquele abadá surrado, do último Carnaval que passara em Salvador bebendo todas, beijando muito e suando em bicas. Dias bem diferentes eram de Bach e Vivaldi, introspectivos, ensimesmados, em que fazia uma reflexão ampla do estar no mundo e coisas que tais, sem jamais chegar a qualquer conclusão. Nesses dias, a vizinha nojenta nem notava sua presença no edifício, a não ser que o som estivesse alguns decibéis a mais. Invariavelmente pela época das festas juninas, só rolavam as sanfonas de Luiz Gonzaga, Sivuca e Dominguinhos. E se espalhava pelo corredor um cheiro doce de pamonha, bolo de milho e canjica. Quando o bicho estava pegando mesmo, ensurdecia o andar com Deep Purple e Black Sabbath, de baixar polícia no local a pedido de vizinhos de vários andares. A vizinha nojenta era a única a não reclamar, pois gostava daquela zoeira ensurdecedora. E era o só momento em que ela e a vizinha nojenta estavam acordes em gosto musical. Quando amanhecia de ressaca, a boca amarga, o horizonte fechado a cadeado, punha a tocar Maysa ou Marisa Gata Mansa. E, se fosse caso grave de dor de cotovelo, baixava a guarda totalmente com Nélson Gonçalves e Lupicínio Rodrigues, sem o mínimo constrangimento de revelar a idade.

Lá um dia pôs a rodar a Sonata Patética de Beethoven. A vizinha nojenta estranhou. Nunca ouvira tal som, nos tantos anos de convivência de portas laterais, no corredor daquele antigo edifício residencial, nas proximidades do centro da cidade. Mas teve de sair para ir ao banco. E atribuiu a música às esquisitices da moradora do quinhentos e três, como de hábito.

Ao voltar, ainda pegou, do início, a Marcha Fúnebre de Chopin, o que a deixou ainda mais preocupada. Entretanto entrou para seu apartamento e tocou a vida, com os afazeres domésticos e os estudos em linha, para o trabalho final do curso.

Ao final da Marcha, fez-se um silêncio sepulcral no pavimento.

Não muito tempo depois, a vizinha nojenta percebeu entrar sob o vão inferior da porta um filete de água cor de rosa. Abriu a porta, a fim de descobrir a origem do vazamento, e constatou vir da vizinha musical ao lado. Tocou a campainha algumas vezes, sem sucesso. Como a água continuasse a escorrer também pelo corredor, interfonou ao zelador, comunicando o problema.

Rapidamente fez-se um ajuntamento de vizinhos à frente da porta, a qual, por mais que se tentasse, não foi aberta.

O zelador providenciou a vinda de um chaveiro e solicitou a presença de testemunhas, para que pudesse entrar no apartamento.

Lá no fundo, na banheira a extravasar água cor de rosa, estava o corpo inerte da mulher, com os pulsos cortados a gilete.

Ironicamente foi a vizinha nojenta que providenciou os trâmites dolorosos para sepultar a vizinha musical, que morrera sem ninguém a se preocupar com ela, uma vida solitária à procura de possibilidades impossíveis.

Nesse dia, ela e a vizinha nojenta fizeram tudo bem diferente do que haviam feito durante aquele tempo de estranhamento.

                                Imagem em olhardigital.com.br.

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