Fazia um frio fininho. Vinha
vindo um vento leve e perfumado de verde do lado da morraria que fechava o
horizonte da fazenda. O sol descaía mansamente do outro lado, manchando de
cores as nuvens que o céu bordava com novelos de algodão. A criação de terreiro
procurava o rumo da proteção contra os sortilégios trazidos pela noite,
enquanto os animais de pasto cessavam o bulício natural da lida. O dia se
recolhia.
Acomodada ao pé do rádio de
pilha, a mulher acompanhava a Hora do Angelus, como de costume, até que entrasse
o prefixo musical do noticiário, quando então se dirigia à cozinha para
terminar a janta, começada um pouco antes das dezoito horas. Na mansidão da
casa vazia, só se ouviam seus passos e o barulho da faina de preparar a comida.
Daí a pouco chegariam da escola,
localizada na vila a quase uma légua de chão, seus três filhos – dois garotos e
a menina caçula – com os barulhos infantis, as novidades escolares e um apetite
avassalador. O marido, em seguida, dava sinal da sua presença, ao bater a
porteira à passagem da mula que cavalgava, assoviando alto, num código
estabelecido na família.
- Papai está chegando! –
exclamava sempre um deles.
Todos entravam pela porta
dos fundos, que dava imediatamente na cozinha ampla, um patamar abaixo do
restante do espaço construído. A casa se postava acima do terreno cerca de um
metro e meio, sobre pilares de madeira, entre os quais havia uma espécie de
porão para a guarda de tranqueiras. Os quartos, a sala e o alpendre, que se
abria em direção ao terreirão de café e à estrada de chão, estavam a quatro ou
cinco degraus acima do nível da cozinha.
Naquela hora do dia, já
baixada a noite nesse tempo frio, a escuridão se estendia sobre todo o espaço
que a vista alcançava. Aos poucos, começavam a acender seus candeeiros e
lamparinas as casas dos colonos que salpicavam o terreno, do outro lado da
estrada. E o jenipapeiro frondoso, a dominar o morrote diante da porteira,
principiava a desaparecer sob o manto escuro que se fazia, juntamente com os animais abrigados
sob sua copa.
A casa da fazenda se
iluminava fracamente com a energia produzida pelo dínamo a carvão, desde o
escurecer até o clarear do dia seguinte. Havia sempre alguém incumbido de pôr a
geringonça a funcionar, tão logo o lusco-fusco baixasse: direcionar o jato que
corria pela banqueta de terra em direção à roda d’água, a qual, por um sistema
de correias, fazia girar o dínamo.
Cessados os barulhos dos
afazeres próprios da fazenda, a cantoria dos grilos, das cigarras, dos sapos e
de uma e outra ave noturna concertava a sinfonia comum daqueles ermos, a se
misturar então com a voz cadente dos locutores da Voz do Brasil.
- No Rio de Janeiro,
dezenove horas!
E era o único sinal, naquele
instante, a ligá-los ao mundo exterior pelos idos dos anos cinquenta do século
passado.
A mulher punha a mesa e
chamava todos ao jantar, após a última criança tomar seu banho, vestir o pijama
e passar o pente nos cabelos rebeldes.
A comprida mesa, de madeira
natural, ladeada por dois bancos da mesma extensão comportava a família e quem
mais chegasse. O marido se sentava à cabeceira, como o hábito da época, puxava
seu copinho de pinga, dava uma boa talagada, estralava a língua e servia seu prato.
Em seguida a mulher, que também providenciava os pratos dos três filhos. Não se
recusava alimento. Todos comiam de tudo que estivesse servido à mesa: arroz,
feijão, angu, bife de fígado acebolado, quiabo, taioba e tomates cortados em
rodelas generosas. Nem que fosse um pouquinho.
Terminada a refeição, o
homem, quando não tinha registros de atividades a fazer, ia ler os jornais
vindos da capital com alguns dias de atraso, sem se importar com a atualidade
da informação. Para quem nada sabe, tudo é novidade, dizia ele. E ficava a par
das maquinações políticas, da variação dos preços do café, do resultado da
Loteria Federal e das últimas do futebol carioca. O seu time, o América, fazia
bonito no campeonato daquele ano, com as defesas milagrosas de Pompeia, o Constellation,
o goleiro que voava na pequena área, como pontuavam os locutores.
Enquanto isso, as crianças
preparavam as lições de casa para a aula seguinte, enquanto a mãe voltava para
perto do rádio, sintonizado na novela do momento, n’A Lira de Xopotó ou
no Balança Mas Não Cai.
Daí a pouco era hora de
todos se recolherem para o sono da noite.
No dia seguinte, mal raiado
o sol por detrás da morraria, o casal e os meninos pulavam da cama, aos
primeiros acordes do galo mestiço, para continuarem a faina interrompida com a
noite. Por entre a cerração baixa que impedia ver longe, enevoando de branco a
paisagem ao redor, um abria o galinheiro, chamando as galinhas com a vasilha de
milho; outro levava a comida dos porcos em suas cevas; um abastecia a moega com
a palha de milho, combustível a acender o fogo para o café; enquanto a mulher
moía os grãos torrados, preparava o coador de pano sobre o canecão de ágate,
punha a água a ferver, passava o café e chamava todos, assim que a mesa
estivesse posta: café, leite quente, banana cozida com canela, queijo curado,
manteiga, pão requentado ao forno.
- Café na mesa!
Em instantes chegaria o
tropeiro, para ajuntar os burros da tropa, com sua saudação rotineira:
- Ô, de casa! Tou chegando!
Bom dia para todos!
Um pouco depois eram o
seleiro, os cuidadores da estufa de mudas de café, os campeiros...
E brotava mais um dia buliçoso na vida daquela gente.
Saint-Clair, que texto lindo!
ResponderExcluirOuvi novamente o locutor , o speaker, como se dizia, anunciar as 19 horas no Rio de Janeiro. Nos estavamos em frente! Depois vinham A lira de Xopotó e o Balança, balança, balança... mas não cai!
E às 22 horas , se nao me engano, tudo apagado ate o dia seguinte. Roça de café? Nao,perímetro urbanoe Niteroi!
Beijos, querido, obrigada!
Obrigado a você pelas palavras, Eliana! Fico feliz em reviver tais lembranças. Beijos!
ResponderExcluirMeu querido,obrigado por acalentar meu coração com a simplicidade dessa história
ResponderExcluirObrigado pela leitura e pelo comentário. Mas aqui apareceu "desconhecido" para mim.
ExcluirMecheste com minha emoção saudades.
ExcluirVerdade amigo na nossa Carabuçu sempre foi assim
ResponderExcluirVocê me levou de volta no tempo. Fiquei emocionado com a história do tio Aurélio, tia Toninha e seus três filhos, meus primos e grandes amigos até hoje! A literatura nos põe a viajar por mundos desconhecidos, mas essa história me levou de volta à fazenda do Jacó. Maravilhoso!
ResponderExcluirNão sou desconhecido não! Ora veja só! Sou o Adriano, lá da Capital do Mundo, assim como o autor. Hehehe!!!
ResponderExcluirHahaha! É isso aí, Adriano! Grande abraço!
Excluir