27 de outubro de 2016

XÔ, BICHO! XÔ, SACI!

(Conto baseado em história contada por minha mãe.)
A cachorrada latia no alvoroço do clarão da noite enluarada. Lá fora corria um vento fino e assobiador em cabeça de estaca de cerca, em parecença de noite excomunguenta de bicho dos eitos dos infernos. Era de não se botar as canelas além do batente da porta, muito menos o nariz.
Toniquinho Pinto, veterano conhecedor de saci e demais aparições noturnas, asseverava grandes pompas para daí umas duas horas, lá pela volta da meia-noite, conforme é do costume dessas manifestações. “Sim, senhor, hoje é festança das grandes em terreirão de café, que dirá em descampado de guiné alto ou curvas de figueiras tortas. Tá chegano a época da desova do saci”. Que saci botasse ovo era postulado que não precisava de prova, tal e qual na matemática, ciência de que também costumava afiançar conhecimentos, além de alguns ditirambozinhos de caxambu em noites juninas, “coisa essa que faço num romper de ideia, num faiscar de imaginação”.
Aboletado no alto dessas três pilastras de sua mais alta cultura, Toniquinho nem atendeu a ponderação do sobrinho, descrente de assombrações, ao afirmar que “enquanto a fêmea do saci cuida do ninho, o macho vira peste na defesa dos ovos”. E num e noutro parecer mais científico, tratou de esclarecer a todos a genealogia desse ente, segundo ele, filho mal acabado do bicho ruim, que escapou dos quintos dos infernos, desgostoso da forma que lhe foi dada pelo seu criador, “com letra minúscula”, frisava, e resolvido de bagunçar a raça humana em gozações e medos, que espalhava no granel e no varejo. Para ele, nessas ocasiões, desafiar a pestilência do macho era a mesma coisa que padecer de umas boas chibatadas em pelourinho do tempo dos escravos.
            - O de mais interessante nessa raça é que o ovo, do tamanho do ovo de avestruz, tem duas gemas: uma vermelha e outra roxa. A clara é leitosa que nem o próprio leite. E doce que nem mel.
            Conhecimentos assim tão pormenorizados e detalhados não são de se desprezar, motivo mais do que suficiente para fazer o sobrinho Honorino Pinto meter os beiços de revesguete, num risozinho zombeteiro:
            - Mas, tio, como é que o senhor sabe dessas coisas todas? Por acaso, o senhor já comeu ovo de saci?
            O velho olhou para lado e outro, telhado e assoalho, esquadrinhando presenças invisíveis naquele fundo de noite tenebricosa. Então o Honorino não tinha tomado conhecimento pela boca dos parentes? Se havia coisa que Toniquinho fazia questão de ostentar, era a história da gemada de ovo de saci que tomou, quando no romper dos dezoito anos.
            - Vinha eu em marcha picada, na pressa de chegar em casa, quando o cavalo, o Deixa-vim, lembra dele?, passarinhou nas patas traseiras. Isso era uma noite de treze de agosto. Foi em 1943. Eu tinha acabado de sair de um baile em casa de Castorino da Zilda, um mineiro claro e gordo, pai de quatro moças bonitas, que tava sempre animano a Vala com uma dança, na esperteza de escolher genro. O Deixa-vim, mais do que acostumado a viajar de noite, o bicho enxerga dez veiz mais do que gente; bem, o Deixa-vim, rédea solta, estacou na passagem do sítio do Nilo, ali onde hoje tem o curral. Naquela época, era tudo plantado de milho. Golpeei o animal na pá e senti a roseta encontrar resistência de couro retesado. Tornei a chuchar a espora com mais força, na mesma hora em que dei com o rei na prancha do pescoço dele, dano um galeio no corpo, em modo de quem já tá de saída. Nada! O cavalo tinha arrumado uma empacação que eu nunca tinha visto igual. Como a noite tivesse clara, corri os olhos em volta, para apurar a situação e ver se achava a razão daquela atitude. Cobra não era, nem cascavel, nem surucucu, que era o que mais tinha naquela zona. Talvez uma cotia? Que o quê! Fui, então, seguino com os olhos no avançado da cabeça do cavalo e deparei, a uns três metros mais adiante, com um ovo grande, branquinho, branquinho, com a casca alumiano no luar. Pensei cá comigo: só pode ser ovo de ema. Tá muito grande para ser ovo de criação de quintal. No que imaginei, apeei do animal, passei a mão naquele bitelo daquele ovo e meti no embornal. O danado tava quentinho ainda! Casca dura, foi sem quebrar até em casa. Lá chegano, ainda dei com a nega Anunciata mexeno no fogão, ferveno água pra tomar banho. Falei com ela: Ô, Anunciata, me aprepara uma gemada com esse ovão aí! Pela fome que trago do baile do Castorino, só dá pra deixar um golezinho pr’ocê exprementar.
            Honorino, nessas alturas, já se arrependera de provocar o velho tio. Era quantas vezes alguém tocar na história, tantas vezes ele repetir com a riqueza de detalhes que só a velhice nostálgica é capaz de fornecer. Ele mesmo, o Honorino, já tinha ouvido essa mesma história cerca de umas quinze vezes em seus trinta anos de vida. Gostava de ouvir o velho contar os casos dos antigamentes, é verdade, mas tinha absoluta descrença por tudo que dissesse respeito aos desvãos da noite. Para ele, tudo isso não passava de falta do que fazer da gente antiga, mais preocupada em se fazer respeitar pela quantidade de medo que conseguisse infundir nos mais novos. Mas ele, Honorino, letrado em colégio da cidade, conhecedor de um e outro poste de luz elétrica, sabedor das mitologias dos gregos e dos romanos, dois povos, esses também, sem nada com que se preocupar, ele, Honorino, fazia absoluta questão de passar por cima de tudo isso, com aquela audácia fornecida pela ciência livresca, pela fronte altaneira de quem tivera tomado contado com as Humanidades. Não era de se impressionar com coisa pouca, depois que lera sobre o processo de mumificação dos faraós egípcios, mortos mais que mortos, apesar do corpo ainda conservado.
            A luz da lamparina vacilava, embaciando a vista das pessoas ao redor da conversa. Biscoitinhos de polvilho, cafezinho quente cheirando no fogão de lenha animavam a roda que se deliciava e tremia com os causos do tio Toniquinho. Rita era a indagadeira:
            - Mas, tio, e aí?
            - Minha filha, a Anunciata esconjurou o tamanho do ovo e disse que nunca tinha visto um tal e qual aquele: nem de ema, nem de avestruz, nem de cobra. “Ô, Toniquinho, ‘cê vai querê gemada desse ovo, se ‘cê nem sabe do que qui é?”. Sem discutir meu pedido, mas. com muito custo, quebrou o cascão do ovo e derramou numa bacia de ágate da China para bater. Pessoal, o pinote que ela deu quando viu aquelas duas gemas diferentes foi desconforme. Me gritou, no que corri até o fogão para ver que bicho que era. Nada! Só um ovo com duas gemas. Falei com ela para tirar a mais escura, que já devia de ‘tar galada, e fazer a gemada só com a outra. Fez e bebi. Só fui descobrir que era ovo de saci quando, no outro dia, falei com o Ditinho Xará. Aí ele me deu tudo que era explicação. Isso que eu falo pr’ocês. E disse mais o Ditinho que, se eu tomasse da gema roxa, tinha virado saci também. Desconjuro! Cruz credo!
            Mais e mais a cachorrada aumentava a confusão no terreiro. Toniquinho explicava, nesse momento, estar chegando a hora e, mais do que nunca, era preciso dizer uns desagravos, chamar uns santos para proteger a criação e livrar a casa de alguma malvadeza dos encapetados.
            - Tio, sabe que eu não acredito em nada dessas bobagens que o senhor conta? Saci só existe aqui na roça, nesse cafundó de Judas. Na cidade, onde tem luz elétrica, clareando a noite, como é que não se ouve falar em saci?
            Súbito, um barulho ensurdecedor se fez ouvir no telhado da casa, como se fossem arrobas e mais arrobas de milho chovendo de uma grande altura.
            - Olha as suas besteiras no que tão dano, seu Honorino sabidão! Fala mais besteira e essa casa pode ficar sem cumeeira!
            - E eu tou lá acreditando nisso! – gritou o sobrinho desaforado, já desconfiado do barulho estranho. – Vai ver, o senhor aprontou um das suas com o campeiro.
            O vento zumbiu feio nas lascas de cerca e varreu o alto da casa, arrancando telhas, papéis velhos lançados ao ar. Uma profusão de ave Maria cheia de graça o senhor é convosco encheu a mesa de biscoitos, no medão que tomava conta das mulheres; uns ai meu Deus, ai minha Santa Barba, meu São Jerome respondiam pelos homens desencorajados.
            - Tá veno no que tá dano a sua falta de respeito, seu desbocado?!
            - Isso é só um vendaval, uma tempestade de vento! Será que vocês não estão vendo isso, meu Deus do céu? – Honorino tentando convencer os parentes dos faniquitos da natureza.
            - Deixa de sê bobo, menino! Olha o que eu tou te dizeno!
            - Quer saber de uma coisa, tio? Se saci existe mesmo, eu exijo que um entre aqui, que eu afundo o cachimbo goela adentro e ainda arranco aquele gorro vermelho, de que o senhor fala, mal costurado da cabeça dele.
            - Crendospadre! Virge Nossa Senhora! O desabusado está desafiano o coisa ruim.
- Para com essas bobage, Honorino! – A vez de sua mãe, transparente de medo, pedir.
A porta da casa se abre na violência do vento em rodamoinho que contorna Honorino e o suspende pela cumeeira destelhada, corpo como folha seca a balançar no ar. Mais de um se benze e se ajoelha. O velho Toniquinho, vibrando a gurumbumba, ainda gritou para o sobrinho voador:
- Bem feito, miserento!
Uns se agarrando aos outros, outros se abraçando a uns, o velho soberboso de sua ciência em saci, aparentando calma, começou a mascar uma bolachinha de polvilho molhada em café. O terror estampado em mais de uma cara familiar.
Enquanto isso, o terreirão era uma barafunda só: cães latindo; lapadas de chicotes cortando a noite; assovios mais do que conhecidos, misturados a gargalhadas debochadas; gritos de gente, mais precisamente de homem sendo açoitado; criação em cacarejos desesperados e voos destrambelhados. Os gritos de homem a superar a balbúrdia daquela noite de agosto.
Por fim, a calma. Silêncio profundo e manso: tempestade que passou.
Pela porta aberta com o vento, inesperadamente, é lançado aos trambolhões o corpo inconsciente e lanhado a chicote de Honorino Pinto, com toda a sua ciência e sapiência.
Ao fundo, junto do chiqueiro, gargalhadas e assovios ainda mais debochados.

Saci, em desenho a nanquim de Monteiro Lobato (em fantasia.wikia.com).

3 comentários:

  1. Estou me deleitando com suas histórias. Sua maneira de narrar me leva para um terreiro ao pé do fogo de uma fogueira, ouvindo um Toniquinho desses a desfiar assombrações e sustos.

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    1. Obrigado pela leitura e pelo comentário Siovani! Arraste seu banco e veja outras que aqui estão.

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