- Remorso, moço, é um troço embaraçoso que atravessa o peito da gente como uma flecha encastoada bem no meio do coração. Digo isso, porque penso agora numa tia, que passou parte da vida de casada implicando com meu tio e o seu gosto de beber cachaça, jogar carteado e torcer pelo Fluminense, e depois ficava diante da tevê, nos jogos do Tricolor, os olhos marejados d’água, assim que ele se finou. Rigorosamente ela nem sabia para que lado torcer, mas gastava os noventa minutos, incluindo o intervalo e os acréscimos que dá o juiz, imóvel na frente do aparelho. E passava todo o tempo da partida com os olhos fincados na tela, como se o procurasse, em vão, entre os torcedores.
Tão logo o jogo acabava, ela ia para frente
da imagem de São Judas Tadeu, que era o santo da devoção dele, embora nunca
tenha entrado numa igreja, a não ser quando se casou há não sei quantos anos, e
lá, olhando fixo os olhos da imagem, fazia seus pedidos, suas orações, para que
aquele remorso se findasse, como se finou seu marido, meu tio de muito boa lida
com toda gente, que morreu dormindo como um passarinho, na mais santa paz. E
acho que também pedia para que, caso fosse digna de misericórdia, se finasse
tal qual ele mesmo, de modo a purgar esse remorso que enchia seu coração de dor
e de tristeza.
Certa vez, sua filha mais nova, que, por não
se ter casado, ainda morava com ela, a viu mexendo numas camisas antigas dele, nas
quais passava as mãos como se as acarinhasse. Até cheirar, ela cheirou. E
encostou a fralda da camisa no seu rosto. Essa filha, minha prima, depois me
contou isso e ficou imaginando o que se passava com a mãe. No fundo, bem lá no
fundo, ela desconfiava das razões, porque foi testemunha das malquerenças dela
com o pai, sobretudo nos anos finais da convivência dos dois.
E o meu tio, enquanto vivia seus dias até a
morte, levava na mesma batida de sempre o seu viver distraído, sem se amofinar
com as caturrices dela, bebendo sua cachacinha de alambique, jogando seu
baralhinho de fim de tarde e gritando gol, como se estivesse na arquibancada do
campo de futebol, quando o seu time metia a bola na rede do adversário. E era o
instante em que ela, de rabugice, às vezes quebrava um copo de propósito,
deixava cair uma vasilha no chão, para atrapalhar aquele momento de prazer que
ele tinha. Sobressaltado, ele virava a cabeça a indagar dela o que ocorrera, e
ela, com certa antipatia, respondia entre dentes que não havia acontecido nada,
que ele podia voltar a se preocupar com o seu jogo. Aliás o seu maldito jogo!
Na vila ninguém sabia disso, pois ele jamais
reclamava com os amigos, mesmo que estivesse amuado. E, por vezes, descontava a
chateação com uma tacada vigorosa na bola sete – morre não morre na boca da
caçapa –, momento em que vibrava o taco como uma espada em duelo e aproveitava
para pedir mais uma dose de calibrina, que sorvia de um só trago, estralando a
língua ao final, seguido de uma careta.
Tempos depois, ao morrer numa madrugada
sombria, sem um ai, sem um tremelique no corpo, deixou atrás de si uma espécie
de alívio, nas palavras da minha tia, que não atinou naquele momento para as
consequências da sua ausência. Penso mesmo que ela foi incapaz de perceber que
o amava, ao mesmo tempo em que implicava com ele. É que ela era uma mulher enquizilada,
de mal com a vida que tinha, repleta de apertos e privações, que sempre atribuía
a ele e à sua vida um tanto insensata.
Daí pra diante, moço, o remorso remoía dentro
dela feito uma verruma rombuda procurando furar madeira dura, numa gastura
diária que parecia sem fim. Mas tinha a esperança de que, um dia, aquilo se
aquietasse, e esse remorso se findasse, como tudo se finda na vida, como meu
próprio tio se findou e ela também iria se findar.
Tempos depois, quando minha tia morreu, levou
consigo um semblante serenado, como se meu tio tivesse passado, lá do além para
onde foi, uma borracha definitiva sobre tudo o que sofreu com ela. Eu, que
sabia de toda a história e estava presente no velório, senti isso: meu tio foi
capaz de perdoá-la no momento derradeiro.
- E, por acaso, eu conheci essa sua tia,
rapaz? Esse seu tio?
- Conheceu não, moço. E acho que só relatei isso
para dizer como o remorso é esse troço embaraçoso na vida da gente.
John Williams Waterhouse, O remorso de Nero, 1878 (imagem em Wikimedia Commons).