18 de abril de 2025

REMORSO


- Remorso, moço, é um troço embaraçoso que atravessa o peito da gente como uma flecha encastoada bem no meio do coração. Digo isso, porque penso agora numa tia, que passou parte da vida de casada implicando com meu tio e o seu gosto de beber cachaça, jogar carteado e torcer pelo Fluminense, e depois ficava diante da tevê, nos jogos do Tricolor, os olhos marejados d’água, assim que ele se finou. Rigorosamente ela nem sabia para que lado torcer, mas gastava os noventa minutos, incluindo o intervalo e os acréscimos que dá o juiz, imóvel na frente do aparelho. E passava todo o tempo da partida com os olhos fincados na tela, como se o procurasse, em vão, entre os torcedores.

Tão logo o jogo acabava, ela ia para frente da imagem de São Judas Tadeu, que era o santo da devoção dele, embora nunca tenha entrado numa igreja, a não ser quando se casou há não sei quantos anos, e lá, olhando fixo os olhos da imagem, fazia seus pedidos, suas orações, para que aquele remorso se findasse, como se finou seu marido, meu tio de muito boa lida com toda gente, que morreu dormindo como um passarinho, na mais santa paz. E acho que também pedia para que, caso fosse digna de misericórdia, se finasse tal qual ele mesmo, de modo a purgar esse remorso que enchia seu coração de dor e de tristeza.

Certa vez, sua filha mais nova, que, por não se ter casado, ainda morava com ela, a viu mexendo numas camisas antigas dele, nas quais passava as mãos como se as acarinhasse. Até cheirar, ela cheirou. E encostou a fralda da camisa no seu rosto. Essa filha, minha prima, depois me contou isso e ficou imaginando o que se passava com a mãe. No fundo, bem lá no fundo, ela desconfiava das razões, porque foi testemunha das malquerenças dela com o pai, sobretudo nos anos finais da convivência dos dois.

E o meu tio, enquanto vivia seus dias até a morte, levava na mesma batida de sempre o seu viver distraído, sem se amofinar com as caturrices dela, bebendo sua cachacinha de alambique, jogando seu baralhinho de fim de tarde e gritando gol, como se estivesse na arquibancada do campo de futebol, quando o seu time metia a bola na rede do adversário. E era o instante em que ela, de rabugice, às vezes quebrava um copo de propósito, deixava cair uma vasilha no chão, para atrapalhar aquele momento de prazer que ele tinha. Sobressaltado, ele virava a cabeça a indagar dela o que ocorrera, e ela, com certa antipatia, respondia entre dentes que não havia acontecido nada, que ele podia voltar a se preocupar com o seu jogo. Aliás o seu maldito jogo!

Na vila ninguém sabia disso, pois ele jamais reclamava com os amigos, mesmo que estivesse amuado. E, por vezes, descontava a chateação com uma tacada vigorosa na bola sete – morre não morre na boca da caçapa –, momento em que vibrava o taco como uma espada em duelo e aproveitava para pedir mais uma dose de calibrina, que sorvia de um só trago, estralando a língua ao final, seguido de uma careta.

Tempos depois, ao morrer numa madrugada sombria, sem um ai, sem um tremelique no corpo, deixou atrás de si uma espécie de alívio, nas palavras da minha tia, que não atinou naquele momento para as consequências da sua ausência. Penso mesmo que ela foi incapaz de perceber que o amava, ao mesmo tempo em que implicava com ele. É que ela era uma mulher enquizilada, de mal com a vida que tinha, repleta de apertos e privações, que sempre atribuía a ele e à sua vida um tanto insensata.

Daí pra diante, moço, o remorso remoía dentro dela feito uma verruma rombuda procurando furar madeira dura, numa gastura diária que parecia sem fim. Mas tinha a esperança de que, um dia, aquilo se aquietasse, e esse remorso se findasse, como tudo se finda na vida, como meu próprio tio se findou e ela também iria se findar.

Tempos depois, quando minha tia morreu, levou consigo um semblante serenado, como se meu tio tivesse passado, lá do além para onde foi, uma borracha definitiva sobre tudo o que sofreu com ela. Eu, que sabia de toda a história e estava presente no velório, senti isso: meu tio foi capaz de perdoá-la no momento derradeiro.

- E, por acaso, eu conheci essa sua tia, rapaz? Esse seu tio?

- Conheceu não, moço. E acho que só relatei isso para dizer como o remorso é esse troço embaraçoso na vida da gente.

John Williams Waterhouse, O remorso de Nero, 1878 (imagem em Wikimedia Commons).