1. Meu pai está comigo ao colo no banheiro, que fica do lado
de fora da casa simples. Aquilo era o que chamávamos de quartinho, de paredes
de madeira. É final do dia, e tomamos um banho frio, na tarde quente.
2. Meu pai chega de viagem do Rio de Janeiro, onde fora
submeter-se a cirurgia de apêndice. Abre sua pequena mala de couro, de onde sai
inesquecível cheiro de maçã, que me impregna as narinas até hoje.
3. Meu pai traz para casa e solta no terreiro uma capivara.
Durante certo tempo, foi o nosso bicho de estimação – do meu irmão e de mim.
4. Meu pai sofre terríveis episódios de cólica, que o deixam
transtornado. Pensei que fosse perdê-lo, então. Era uma úlcera duodenal,
extirpada posteriormente em Itaperuna. Felizmente viveu até seus noventa e
cinco anos.
5. Meu pai planta um pé de jamelão, na divisa do nosso
quintal com o do tio Nalim. Fico triste quando me diz o tempo em que a árvore
começaria a dar frutos. Muito antes do meu tempo psicológico, meu irmão e eu já
nos lambuzávamos de roxos jamelões suculentos.
6. Meu pai faz salada de frutas, que coloca numa fruteira de
vidro azul, estilo art déco, tempera com açúcar e vinho moscatel. Com uma
única colher, serve seus então três filhos, que se revezam na fila: Gute, Eliza
e eu.
7. Ao fazer doze anos, meu pai me autoriza a andar em sua
espetacular bicicleta inglesa Humber, com a recomendação de que não o fizesse
sobre as calçadas da vila, nem caísse com ela. Os meus arranhões o Zé da
Farmácia curaria facilmente. Os dela, só na Inglaterra, para repetir a pintura.
8. Meu pai pede que o ajude a levantar o saco de arroz a ser
vertido no caixote da venda que tinha na parte da frente da casa. Ao fim da
ação, pergunta se eu tinha feito força. Digo que não. Ele diz que a fez
sozinho.
9. Na dúvida entre assumir cargo no Banco do Brasil, fruto
de concurso público, ou vir para Niterói fazer faculdade, ele me diz,
contrariamente a todas as outras opiniões de amigos e conhecidos: “Filho, se
você aceitar, ficaremos felizes por estar com um bom emprego e tristes por ir
para longe. Se for para Niterói, estaremos felizes por realizar seus sonhos e
tristes por ir para longe. A vaga do banco é sua. Você faz o que seu coração
mandar”. Vim para Niterói.
10. Caminhando em direção à rodoviária para vir em definitivo
para Niterói, ainda que à época não percebesse isso, ele, empurrando sua
bicicleta, me diz: “Filho, não tenho dinheiro para sustentá-lo lá, apenas esta
ajuda aqui. Mas cuide sempre do seu nome, da sua honra, que é o que temos de
nosso. E isso ninguém pode nos tirar”.
11. Um mês após o fim da Copa do Mundo da África do Sul,
chego a Bom Jesus para visitá-lo, e ele me pergunta um tanto entusiasmado: “Meu
filho, você conhece a Shakira?”. Com noventa e três anos, ainda lhe movia algo
bem lá no âmago.
12. No fim da vida, já com a consciência em frangalhos, meu
pai me pede que o leve até nossa vilazinha de Carabuçu, porque precisava
encontrar sua mãe e falar com ela. E me confessa, menino: “Eu, sem ela, não sou
nada, meu filho!”. E morre alguns meses mais tarde.
Hoje ele faria 99 anos.
Saudades, meu velho e saudoso pai!
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Café da tarde na casa paterna (foto do autor).
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Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em 11/5/2016.
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Um excelente texto. Um pai que qualquer filho gostaria ter tido e um filho que orgulharia qualquer pai.
ResponderExcluirObrigado, Alfredo! Grande abraço!
ExcluirQue lindo texto! Que privilégio poder se emocionar com tamanha delicadeza! Um beijo no seu coração.
ResponderExcluirObrigado! Mas o seu nome não aparece aqui no comentário.
ExcluirLindo amigo Você merecia o pai que teve ele de onde estiver tem orgulho de você e seus irmãos
ResponderExcluirObrigado por suas palavras. Pena que aqui saiu como anônimo.
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