16 de janeiro de 2019

DONA HILDA


Pior que o tombo foi a desatenção do filho preferido.
Dona Hilda teve uma tontura, rodopiou no corredor da casa e caiu para trás, batendo com a cabeça na parede. A sobrinha acorreu em socorro e a levou ao hospital mais próximo. Não fora nada de pior, constatou o médico, após uma bateria de exames. Apenas a contusão na nuca, que se chocou sem grande impacto contra o reboco fofo da parede da casa simples. Nenhuma sequela a mais.
Voltou para casa, com recomendação de que fizesse repouso e aguardasse a ocorrência de possíveis outros sintomas até o próximo dia, com o que deveria se reportar ao médico atendente. Se nada mais houvesse, seguisse a vida de noventa e dois anos bem vividos, bem sacudidos, como até aquele dia. Despreocupadamente, como dissera o médico. Dona Hilda tinha uma saúde praticamente inoxidável.
Nada houve. E dona Hilda pôde voltar a cuidar da irmã doente, em casa de quem ocorrera o acidente.
Contudo, se não houve consequentes danos físicos, um dano ainda pior começou a minar seu prazer em viver: o filho primogênito, seu xodó dentre a prole imensa, ainda não havia ligado de Belo Horizonte, para saber como ela estava e, mesmo, se estava viva. E aquilo começou a lhe remoer a alma, fazendo com que ficasse deprimida.
Depois de quarenta e oito horas, prazo mais do que suficiente para a manifestação de qualquer problema, mas já com o psicológico definitivamente abalado, o filho ligou. Até mesmo uma sobrinha que estava de passeio pela Noruega, avisada pelo grupo de Whatsapp da família, telefonara no mesmo dia do ocorrido, preocupada com a saúde dela. E ele, logo ali em Beagá, a menos de cinco horas de Visconde de Rio Branco, demorou infindáveis quarenta e oito horas para se lembrar da mãe agora praticamente uma moribunda psicológica.
Melhor não tivesse ligado.
O filho se justificou com a mãe pela demora em entrar em contato, porque no dia do acidente tinha saído com o Rex para uma volta na praça próxima à sua casa, na Savassi, e, de repente, o Rex começou a vomitar inexplicavelmente sobre a grama. Ele ficou apavorado, voltou célere a casa, pegou o carro e levou o cão ao hospital veterinário de que sempre se vale, quando o Rex apresenta algum problema. E lá ficou com o cachorro, que permaneceu internado para exames e cuidados, sendo liberado apenas no dia seguinte, já lépido e fagueiro, curado de um mal-estar por ter ingerido algo que lhe fizera mal.
E então passara todo o dia seguinte cuidando da dieta do cão, a fim de que não tornasse a repetir aquele episódio. Entretanto também nada de grave, como disse à mãe ao final da sua justificativa.
A mãe ouviu calada, mas preferia não ter ouvido. Sentiu-se preterida por aquele maldito cachorro, que vivia mordendo suas pantufas confortáveis, quando se hospedava na casa do filho, até o ponto de torná-las inúteis. Aquele mesmo maldito cão que lhe devotava uma solene antipatia, sempre que ia lá passar uns dias com o filho e a nora, como vinha ocorrendo com mais frequência, depois de ter cedido sua casa para o neto desempregado e sua família. Aquele odioso animal que sempre subia na cadeira a ela destinada durante o café da manhã, a lhe demonstrar caninamente sua condição de intrusa.
A depressão de dona Hilda piorou bastante desde então, tanto que se mudou para Niterói, para ficar próxima da filha e do genro flamenguista que vive a lhe perturbar a tranquilidade.
Do tombo, já nem se lembra. Da ingratidão do filho, esta levará consigo para o túmulo e para a eternidade.

Banana (foto do autor).


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