11 de novembro de 2016

QUEM MATOU JOÃO SOLDADO?

  
         Donga arriou na mesa quadra e quina, fechando a cacheta de cunca. Era a terceira vez que ganhava naquela noite de três de agosto. Os parceiros de jogo, mais quatro amigos, refizeram a banca de dois cruzeiros cada. Um acendeu cigarro de palha, depois de picar na concha da mão, com canivete amolado, o fumo de rolo grosso e cheiroso. Outro, mais chegado a coisas modernas, enrolou, rápido, o seu em papel Fio de Ouro. Este, o Edvar Abreu.

        Lá fora a noite era ainda mais escura que a sala fracamente iluminada por uma lamparina no centro da mesa de carteado. Chovia há alguns dias, ininterruptamente, aquela chuva choradeira e mansa que entra por dentro dos ossos e das coisas da casa: camas, cadeiras, mesas, janelas, assoalho, traves e baldrames. Motivo mais do que suficiente para a falta de luz elétrica: constante atrapalho nas linhas. 

        - Chuva boa pro arrozal, não é mesmo, Dídimo?

        Distraído, Dídimo não respondeu: atenção voltada para uma trinca de quatro, uma liga de seis e sete de ouros e mais outras cartas menos importantes. Mas, de fato, aquela era a chuva que todo plantador de arroz, como Donga, gostava de sentir. Propriedade na vargem, grande extensão plantada com arroz pacholinha, até a banqueta, nessa época do ano, ficava meio sem serventia, na sua função de irrigar as terras.

        Dídimo, o mão, descartou a primeira e comprou, logo a seguir, o oito de ouros:

        - Como é que você disse mesmo, Donga? – Novo descarte.

        - Essa chuva... boa pro arroz.

        - É verdade! Você deve fazer uma boa colheita este ano, não é mesmo?

        - Por volta de umas duas mil sacas de arroz em palha. Já teve ano melhor, mas este está muito bom. - Donga sempre a se lamentar do presente.

        Edvar estendeu o braço em direção ao baralho. De repente, dois tiros, vindos da janela entreaberta, estrondaram perto; pelas costas, à traição. Desamparado, seu corpo tomba sobre a mesa, lambuzando de sangue a toalha branca, empapando as cartas.

        A calma cedeu lugar ao desespero. Aqueles homens maduros, cada um mais desatinado, atiraram-se ao chão com medo de que a desgraça aumentasse de proporções justamente sobre suas peles.

        Passado algum tempo, Donga, o dono da casa, correu ao quarto e pegou sua garrucha de dois canos. Alair Moura sacou da cintura o trinta-e-oito que sempre trazia consigo e acompanhou o amigo até a porta da frente. A escuridão, porém, escondera o autor dos disparos. Os dois voltaram à sala e encontraram Antônio Simplício e Dídimo, janela aberta, procurando o assassino, na inocente atitude de quem o iria encontrar, talvez ainda escondido da chuva sob o avançado das telhas. A lamparina mal deu para alumiar as pegadas grandes que ficaram marcadas na terra encharcada. Pés grandes, pisadas profundas.

        Alair, quando chegou à casa do Jáder Pinto, do outro lado da pracinha, encontrou o subdelegado pronto para sair em busca do local de onde partiram os tiros. Este, vez e outra, tinha lá seus apertos com crimes assim. Liberdade não era, por assim dizer, uma vila sossegada. Há alguns meses, dois ou três, a família Peçanha tinha entrado em luta com a dos Moreira: questões de serventia de água de um valãozinho simpático que cortava ora a propriedade de uns, ora a de outros. A cadeiazinha sempre tinha hóspede, coisa sagrada.

        Quando os dois se dirigiam à casa de Donga, o subdelegado tomando ciência do ocorrido através do relato de Alair Moura, a chuva já passara. Mesmo assim, o homenzinho da lei vestiu seu pequeno corpo troncudo com uma capa gaúcha velha de outros invernos.

        O exame das marcas no chão era simples como de se esperar: olhos aguçados, na frente dos quais se ajeitavam uns óculos de aro redondo e fino, levemente folheado a ouro; corpo agachado sobre os calcanhares protegidos por sapatos com galocha; capa gaúcha resguardada do barro.

        Ali estavam os pés grandes chapados na lama. Dedos projetados para fora, como querendo fugir daquela parte de tamanho acima do normal. Pés de orangotango ou coisa parecida. De certo, só isso. O resto são hipóteses: pistoleiro de aluguel, empreitada traiçoeira, quem mandou, quem executou. Coisas da competência do Jáder Pinto, subdelegado nomeado da localidade. Resolução difícil. Enfim, a vida de gente da lei tem dessas mazelas, dessas questiúnculas: palavrinhas preferidas do dono do único posto de revenda de querosene e gasolina, acumulando há três anos essa função ingrata.

        Enquanto Jáder Pinto inquiria um e outro participante daquele joguinho sem pretensões sobre o ocorrido, foi aparecendo um borbotão de gente interessada no saber o que é que houve, o que é aconteceu. Sem perda de tempo, alguns fatos arrumados na cabeça, o subdelegado dirigiu-se à casa de João Soldado, a fim de solicitar-lhe ajuda na captura do assassino.

        Isolina, a mulher, reclamou que ele, mal chegado, já devia sair com aquele tempo ruim. João resmungou qualquer coisa, tornou a se enfiar no dólmã molhado, cobrindo a cabeça com o quepe puído e velho de soldado da polícia meganha. Para se proteger do frio insistente, deu uma golada no litro de cachaça, cuspiu grosso no canto da cozinha de terra batida e fez careta como que desaprovando o paladar da branquinha, se bem que gostasse muito de uma lambada de vez em quando. Acendeu, em seguida, na brasa de um tição, o toco de cigarro de palha e, sem se despedir, saiu, fechando atrás de si uma porta mal-ajambrada no caixonete. Olhou para o céu a procurar uma possível lua desembestada naquela noite e exclamou para seus botões:

        - Eta, noite escura, sô! Eh, breu!

        Longe dali não ficava a casa do Apolinário, soldado também como ele. Chegou manso, desviando-se de uma e outra poça d’água, e bateu firme três vezes, conforme a senha, na porta do companheiro. De dentro, respondeu a voz rouca e cansada do velho soldado já preste a se aposentar:

        - Guenta um pouco, ô João, que já vou abrir a porta!

        - Não precisa, Polinário. Seu Jáder Pinto foi me chamar pra gente procurar quem é que matou o seu Edvar Abreu.

        - Matou quem?!

        - O seu Edvar, da Fazenda do Fogão.

        - Cruz credo! Logo o seu Edvar?!

        - É... Mas anda depressa que ele já tá esperano a gente lá no bar do Tonho Pinto.

        - Já tou ino. Pera um pouco!

        Num tico de tempo, Apolinário já se apresentava grotescamente fantasiado de polícia: o mesmo dólmã surrado do companheiro, quepe amarelado pelo tempo compondo a farda com uma calça de riscado barato; nos pés, alpargatas em melhor estado.

        - Hoje vou de precata porque tá meio frio e num posso tá apanhano constipação. – tentou se justificar ao ver os pés do outro amassando o barro.

        Era justamente por causa dessa indumentária mambembe que o povo de Liberdade andava dizendo que aqueles dois só eram polícia da cintura para cima e de frente. Porque, quando a coisa apertava, era de praxe ver a lei, em suas calças particulares, de fundos, azular da zona contestada. Se bem que era da ciência do povo, desde há uns quatro anos, ao chegar à vila o João Soldado, que aquele marmanjo de cara abestalhada tinha umas cinco mortes nas costas. Todas elas sem punição.

        O bar do Tonho estava atulhado de gente, todo mundo querendo detalhes do caso. As testemunhas não se cansavam de repetir o relato, cada um a seu modo, acrescentando, ora cá, ora acolá, um dado a mais, uma observação mais particularizada, um vaticínio tardio de desgraça rondando a casa. Alair Moura, esse então, exagerava na história da busca empreendida com o Donga, sacando do trinta e oito e o brandindo no ar como um facão, sempre que chega ao ponto em que dizia: “Aí, nós não vimo nada no breu da noite. Ah, seu eu pego aquele filho de uma égua!”

        Jáder Pinto, agradecendo os préstimos de mais de um afoito desejoso de participar da captura do desalmado, começou a vasculhar a vila, auxiliado pelos dois cães de fila piolhentos, o João Soldado e o Apolinário, garboso com suas “precatas” seminovas. Não ficou beco, rua ou quintal sem receber o faro da lei. Até mesmo o ouvido funcionou apurado, no silêncio da noite, a querer ouvir uma respiração ofegante, um passo acelerado a fugir na lama e no barro. Os olhos fracos do Jáder Pinto e do Apolinário se esforçaram inutilmente na percepção de um vulto fugidio, de uma sombra escorreguenta, de uma visão estranha. Nada!

        O jeito foi voltarem os três, desolados, principalmente o subdelegado, ao bar do Tonho, cerca de duas horas depois. Do povaréu que se juntou em volta da conversa, só os mais novos ficaram aguardando o “resultado das investigações policiais” que, segundo Jáder Pinto, “tinham-se mostrado infrutíferas até o presente momento”, vocabulário típico dos relatórios que, lá uma vez ou outra, remetia à Delegacia de Polícia de Bom Jesus, a sede do município, dando conta de seu trabalho.

        - Ô Tonho, me bota aí dois dedos de camulaia.

        Pelo visto, João Soldado estava mesmo sentindo frio: tremendo, virou o copo, a calibrina esquentando goela abaixo, o bastante para dar motivo a uma piada de mau gosto:

        - Nervoso, hem João?!

        - Sê bobo, sô!

        - Tá tremeno que nem vara verde! – confirmou o impertinente.

       - Tou só é com frio! – esbravejou o soldado da cara abestalhada. – Bota mais uma, Tonho!

        O subdelegado, perdido entre uma suposição e outra que cada qual procurava apresentar, não deu importância àquele diálogo. Sorveu, também, o seu gole de pinga, limpando a boca com as costas da mão, e pôs um fim no ajuntamento do bar:

        - Por hoje, não adianta mais. O jeito é a gente começar as investigações amanhã bem cedinho. Apolinário e João podem ir. Boa noite, gente!

        O burburinho remancheou no bar do Tonho ainda por uma boa hora. João Soldado bebeu mais um gole e saiu do bar, aquele porte de embaúba desconforme gangorrando sobre os pés a se agarrarem ao barro no rumo de casa. 

        Dídimo, meio chocado com a cena há pouco presenciada, tomou, também, o rumo das cobertas. Queria descansar o corpo e a cabeça, procurar esquecer o caso. Nos seus ouvidos permaneciam ainda frescas as palavras do amigo acerca da propriedade da viúva Castorina, esta às voltas com uma hipoteca de terras.


        Castorina Andrade, como meeira do finado Zeca Andrade e administradora do espólio, não conseguiu tocar a contento a propriedade da família, a Fazenda da Boa Esperança. Depois da morte do marido, homem de tino e conhecimento, a colheita do café começara a diminuir ano a ano. E, já decorridos três anos do desenlace, estava ela agora, filhos menores de idade, toda embrulhada num negócio mais estranho ainda: a hipoteca das terras, aí incluído o casarão da fazenda, de vencimento próximo e sem dinheiro à vista. Empréstimo para pagar empréstimo não era coisa que o banco fizesse. Nem que aí entrasse a penhora da próxima apanha. Quando os capitalistas inventaram a hipoteca não foi para encher a barriga de ninguém. Era o que costumava dizer o Edvar Abreu, vizinho de fazenda.

        Castorina, velha amiga da família Abreu, não tivera realmente alternativa a não ser o Edvar Abreu, quando precisou da ajuda de alguém para resolver o problema. Prestativo, desprendido de prevenção contra aquela mulher, prontificou-se ele a conseguir um empréstimo em seu nome, no mesmo e único Banco Hipotecário e Agrícola, em Bom Jesus, para tirar a família da enrascada. Por isso mesmo, já duas vezes estivera no estabelecimento de crédito, renovando a ficha cadastral, levando a papelada que essas ocasiões exigem. O gerente Ranulfo Santiago marcara o fim do mês de julho para que o crédito de mil contos de réis estivesse lançado na ficha do fazendeiro, prazo mais do que suficiente para a viúva saldar a hipoteca, a vencer no dia dez de agosto.

        Essa atitude chateou alguns fazendeiros do lugar, de olho naquela alqueirama boa, de colheita garantida, onde só faltava, de vera, alguém com mais tirocínio de administrador. Isto porque, caso a hipoteca não fosse saldada a tempo, a propriedade iria a leilão, e sempre havia a possibilidade de se arrematar por um precinho à toa, qualquer ninharia, a fazenda.

        Júlio Garcia, Donga Nunes e Antônio Simplício haviam declarado seu interesse pela Fazenda da Boa Esperança. Donga era um dos que mais falara no assunto nos últimos dois meses, tendo, inclusive, perguntado reservadamente ao amigo Edvar Abreu se ele não estaria arriscando capital e prestígio num negócio já dado por liquidado, “negócio podre”, insistia ele.

        - Confio muito na honradez de dona Castorina, além de ser seu amigo de muitos janeiros. Tou sabeno dos riscos que corro, se bem que ela tenha dado em garantia a próxima apanha do café. – Explicação até por demais esmiuçada. Mas era do feitio do Edvar essa abertura de alma, essa confiança nos amigos.

        - Dia cinco de agosto a gente vai até Bom Jesus pra eu passar o dinheiro pra ela. Na mesma hora ela liquida a hipoteca. – Edvar Abreu e sua incontinência verbal.


        Ali estava o corpo inchado do ex-dono da Fazenda do Fogão. Inchado, o corpo: dos pés à cabeça. Nesta, olhos salientes parecendo pular da linha do rosto; nariz intumescido esbarrando nos lábios exageradamente volumosos; bochechas salientes. Quadro de não se querer ver com insistência. Visão desconcertante mesmo para os mais duros. Segundo o Dr. Ademar Figueiredo, as duas balas, a da nuca e a do pulmão esquerdo, estavam envenenadas: coisa para matar, mesmo pegando no cotovelo. Plano de não falhar nem de raspão. Isso a causa da inchação.

        Em volta do defunto, curtido a broa de milho e café-com-leite entremeando cochichos e algumas risadas esporádicas, estavam a tristeza sentida dos amigos e a curiosidade gulosa dos demais. Especulava-se, nessa manhã de quatro de agosto, o motivo da tragédia: a história da fazenda hipotecada que ele iria salvar no dia seguinte ao do enterro.

         Das carpideiras assíduas, amantes da dor alheia, não se esperava choro dos mais comovidos, se bem que contritos, assim como o debulhar de lágrimas da administradora da Fazenda da Boa Esperança, agora, duas vezes desamparada. Dona Castorina, além do amigo, cuja morte encomendavam a Deus, através de um terço zeloso e sofrido, as mulheres de véu negro, sentia no coração o desamparo financeiro, causa de uma possível penúria da família, caso nos próximos seis dias não conseguisse acertar as contas com o Hipotecário e Agrícola.

        O irmão mais velho de Edvar Abreu, o Vitório Abreu, em casa de quem o finado aguardava o enterro, não faria, certamente, o mesmo negócio. Ainda mais porque, escrivão de paz, não dispunha de soma tão avultada de mil contos de réis, nem em cartório, nem em sonho. Não bastasse isso, ele não mantinha o mesmo relacionamento com Castorina, já que não era vizinho como seu irmão fora: fazendas ralando divisas.

        Donga Nunes, tarja de pano preto na lapela do paletó, semostrador dos laços de amizade dele e do defunto, chapéu seguro pela mão esquerda na altura dos rins, cumprimentou Carmelita Abreu, a viúva de Edvar, lamentando o ocorrido e clamando aos céus justiça rápida. Abraçou, comovido, o escrivão, com quem chorou a perda do amigo leal, do fazendeiro próspero e do benfeitor do próximo, assegurando estar a vaga dele, defunto, sem perspectivas de ser preenchida na sociedade da vila. Amealhou um e outro pensamento do Almanaque Biotônico Fontoura mais recente, para garantir que “vida, só uma”, e aproveitou a mão direita folgada para metê-la numa asa de caneca de leite queimado com canela em pau, quentinho de sair fumaça. Como a bandeja de brevidade e broa também passasse por ali, dependurou o chapéu de abas largas no cabide do canto da sala e ocupou a mão esquerda.

        Dídimo Madeira e Antônio Simplício conversavam tão entretidamente no quarto da frente que só notaram a chegada de Donga quando este, com a boca cheia de broa de milho, soprou-lhes alguns farelos misturados a um bom-dia grave e redondo. E engataram numa conversa animada, cujo assunto estava estirado num estrado improvisado, enquanto se aguardava a construção do caixão pelo Zé Carola.


        A manhã de quatro de agosto, mal raiada, pegou Zé Carola na labuta do fabrico do caixão: encomenda de render bom cobrezinho, visto nele abrigar, dali a umas quatro horas, defunto endinheirado.

        Lá pela volta das nove horas, suspensa a diligência para Jáder Pinto fazer sala ao amigo “barbaramente assassinado”, conforme repetira várias e enfáticas vezes o subdelegado, João Soldado deu um pulinho até a oficina do marceneiro, numa bateção de perna de desocupado.

        - ‘om dia, seu Izé!  - gorgolejou o cumprimento o soldado.

        - ‘om dia! – mesma preguiça de abrir a boca.

        - Encomendinha das boa, hem?! – soldado e dinheiro.

        - Sem falsidade, ô João, eu preferia nem tá fazeno esse caixão. Sujeito bão era o seu Edvar, rapaz! Pessoa de num fazer mal a mosca.

        - Verdade... mas uns cobrezinho sempre faz bem, né? Isso sem querer ofender seu sentimento, seu Izé, que sei que o senhor era amigo dele.

        - E do peito!

        - Adesculpe se lhe ofendi!

        Conversa vai, conversa vem, Zé Carola no vira e mexe do serviço, João Soldado no encosta que se recosta na procura de uma melhor posição para levar adiante o bate-papo, pito fedorento de fumo de rolo barato, reco-reco do serrote ofendendo madeira das boas. Num desses movimentos, escorna-se numa das traves de sustentação do barraco-oficina aquele mondrongo desconchavado, gola do dólmã sebenta de dar nojo, aquela cara de besta fugida, aquele porte esguio de embaúba de preguiça: vislumbre suficiente para o Zé Carola observar:

        - Gozado, ô João, esse pezão seu é tal e qual as marca do chão da jinela do seu Donga, hem?! – Brincadeira mais sem graça de quem olhou de cima a baixo o meganha piolhento.

        - Deixa de besteira, seu Izé! Sê bobo, sô! Nem diz um disparate desses!

        O soldado desmanchou aquele tamanho todo na tentativa de esconder os pés grandes, coisa impossível naquele momento.

        Dissera por dizer o Zé Carola, irônico e brincalhão como ele só! O soldado, aliviado, enxugou a testa preocupada com a manga do dólmã, cuspiu entre os dentes, forçando o jato com a língua, ajeitou o quepe, passando a mão imensa pelos cabelos em desalinho.

        - Bão, deix’eu ir andano, seu Izé, que tenho mais coisa pra ver! Inté! E tira essa maldade da ideia!

        - Inté! Foi só brincadeira, ô homem!

        Observação desse quilate é realmente incômoda. E ficou sem ter com quem trocar uma prosa o carpinteiro maritaca. 


        A partir da morte de Edvar Abreu, a chuva, estranhamente, deixara de regar as plantas, encharcar a terra, correr contente pelas grotas verdes de Liberdade. O povo todo já sabia que aquela estiagem súbita, em época chuvosa, era coisa ligada ao assassinato do fazendeiro da Serra do Fogão.

        A Fazenda da Boa Esperança, de Castorina Andrade, estava de leilão marcado para o dia trinta de agosto.

        As investigações policiais revelaram-se inúteis, motivo suficiente para fazer reaparecer as mazelas e as questiúnculas tão caras ao subdelegado. Já por diversas vezes, ele interrogara a população da vila, salvo menores e bichos. Ninguém sabia de nada. Isso levou o subdelegado a solicitar auxílio, através de ofício, à Delegacia de Polícia de Bom Jesus, “providência a ser atendida oportunamente”, conforme resposta rápida dois dias após. 

        Enquanto aguardava perito formado pela Escola de Polícia da capital, Jáder Pinto voltou a seu armazém de tambores de querosene e gasolina, onde não perdia oportunidade de matutar sobre o crime, na tentativa sempre frustrada de desvendar o mistério que o envolvia.

        Por isso é que ele aceitou o convite do Donga Nunes para um joguinho de cacheta naquele vinte e nove de agosto, domingo, de hora marcada para depois da janta. Lá estariam, também, o Dídimo Madeira, o Antônio Simplício, o Alair “Trinta e oito” Moura, apelido que a turma do bar do Tonho lhe pusera depois de umas mil repetições da história: “Aí, nós não vimo nada no breu da noite. Ah, se eu pego aquele filho de uma égua!”.  Joguinho sem compromisso, só pra distração, nas palavras do Donga.


        A toalha de linho branco, lavada com todo o cuidado para não guardar qualquer vestígio do sangue do amigo, estava novamente cobrindo a mesa de jogo. Os dois baralhos de papelão, um pouco gastos, pulavam nas mãos ágeis do dono da casa, carta entrando em carta. A banca, de dois cruzeiros por cabeça já feita, marcou o início da primeira mão.

        - Ô Donga, depois da morte do Edvar a chuva sumiu, hem? – Lembranças do Dídimo a futucar o atento Donga e seus pares, suas trincas e suas ligas de cartas.

        - É mesmo, Dídimo. Agora que o arroz tinha começado a cachear, precisava que a chuva continuasse a cair. Só a banqueta não vai dar conta de aguar aquele arrozal todo, não. Minha esperança é uma novena que a mulher ta fazeno aí. Nessas ocasiões, eu sempre conto com uma mãozinha de São Pedro.

        Jáder Pinto, à esquerda de Dídimo, comprou o sete de paus do descarte do companheiro e o enfiou entre o seis e o oito, empurrando com o cotovelo:

        - Ê gavetinha boa, sô! – ficando bate, não bate,

        O cunca corria tranquilo, principalmente para o subdelegado, que acabara de ganhar a terceira rodada, quando, repentinamente, ao se abrir a janela com um súbito sopro de vento, Donga cai para trás, tombando sobre o encosto da cadeira, como se empurrado por um potente coice de burro. O grito do homem apavorou os companheiros, por segundos imobilizados diante de fato tão despropositado. Imediatamente, levantaram-se os quatro para socorrer o amigo. Qual não foi sua surpresa ao notarem Donga debatendo-se como a querer tirar da garganta mãos firmes que a comprimissem. Jáder Pinto puxou por um braço e Alair por outro, na ânsia de auxiliar o fazendeiro, já com o rosto avermelhado. Assim que o pescoço ficou desimpedido, Donga começou a gritar, num delírio louco:

        - Que é isso, Edvar? Que é isso? Sai de cima de mim, seu merda! Você morreu, você não existe mais! Aquela fazenda vai ser minha, seu fazendeiro de uma figa!

        Entretanto, à medida que Donga vociferava, mais seu corpo se contorcia, se estrebuchava, respiração dificultada, voz gutural. A cena deixou estáticos os colegas de jogo, boquiabertos diante de coisa tão assombrosa.

        - Você não vai me impedir! Argh! Para com isso, Edvar! Me deixa em paz! Você morreu, não pode estar aqui se vingano!

        Jáder Pinto não acreditava no que os olhos e os ouvidos de guardião da lei testemunhavam. Um ou outro acorreram à cozinha a pedir cuidados à mulher do Donga; o subdelegado a postos.

        - Me deixa viver, Edvar, pelo amor de Deus! Eu preciso viver! Eu não devia ter feito isso, mas eu queria aquela fazenda! Não faz isso comigo, Edvar! Eu tou arrependido! Não fui eu quem mandou o João Soldado botar veneno nas balas! Isso foi idéia, argh!, dele, aquele cachorro bernento!

        Dos xingamentos iniciais ao pedido de perdão e ao arrependimento de agora, correspondeu maior agonia, maior desespero, respiração mais difícil, coração descontrolado. Pouco a pouco, as palavras foram cedendo lugar a ganidos e gemidos. Os músculos retesados, os olhos esbugalhados, a boca espumando como um cão danado, Donga estremeceu o corpo na última manifestação de vida que lhe corria pelos nervos. Uma inchação esquisita começou a tomar conta do cadáver, ainda quente, processando uma transfiguração que marcaria em definitivo a vingança de Edvar: as feições de Donga, paulatinamente, foram-se mudando até que assassino e assassinado tivessem a mesma máscara fatal, como gêmeos na morte.

        Nesse instante mesmo, a fraca luz elétrica, interrompida há cerca de dois meses por queda de rede, voltou a iluminar mortiçamente a vila. A chuva, desaparecida desde o dia quatro de agosto, recomeçou a beijar a terra com sua língua líquida, seu lábio fresco. 

        Jáder Pinto e Alair Moura, trinta e oito na cintura, partiram rápido no encalço de João Soldado, pistoleiro de aluguel da Zona da Mata de Minas Gerais, ali na vila convertido em defensor da lei. Antes mesmo de chegarem ao casebre onde o bandido morava com Isolina, ouviram dois tiros, dois estrondos de garrucha quarenta e quatro de se carregar pela boca.

        Do lado de fora da casa, mulher gritando na janela, estava, de bruços, fuçando o barro, o corpo inerte de João Soldado: nuca em frangalhos, pulmão esquerdo estuporado.

Jheronimus Bosch, A nau dos insensatos, 1490-1500 (Museu do Louvre).





        

4 comentários:

  1. Credo!!!
    E eu que não acreditava "nessas coisas"!...

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    1. Daisy, esta história é clássica na minha terrinha. Os mais novos talvez não a conheçam, mas eu a ouvi diversas vezes, quando lá morava. Abraços!

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  2. Está muito bem contada... por isso acreditei!...
    Abraço, amigo Saint-Clair!

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