Nem
todo dia ela fazia tudo sempre igual.
Às
vezes acordava um pouco mais tarde e não punha um disco do Chico para rodar. Por
vezes, Paulinho ou Monarco. Quem sabe Xangô da Mangueira, se a ancestralidade
batesse forte. E mantinha seu estado de espírito saracoteante assim até o fim
do dia. Se acordasse feminista, como nos tempos acadêmicos, tocava Teresa Cristina,
ou Dona Yvone Lara. Se engajada e debochada, era Tom Zé. Se reivindicatória, Lecy
Brandão, ou, mais contundente, Racionais MC's. No dia em que começava com
Piazzola e sua María de Buenos Aires, estava virada no cão, perigava
esfaquear aquela vizinha nojenta, que teimava com Bruno e Marrone ou outra
dupla sertaneja de menor figuração. Havia dias de Tom e Vinícius, sobretudo às
sextas-feiras com suas promessas enganosas de amores possíveis e conforto de corpos.
Se punha a tocar Wando, a vizinha nojenta sabia que não teria sossego pela
madrugada afora, com os gemidos e sussurros a ultrapassar a tênue parede de drywall,
entre seus apartamentos. E a veria, insuportável, escancarar o sorriso, na manhã seguinte, ao som de Sérgio
Sampaio, pondo seu bloco na rua, ou Gonzaguinha, vivendo sem a vergonha de ser
feliz. Quando, bem lá do fundo, subia um Ravi Shankar e seu sitar insinuante, com
o odor de incensos a compor o ambiente, a atmosfera bicho-grilo que ocorria
pela lua cheia, a cada mês, dava o tom da noite. Celibidache regendo o Bolero
de Ravel indicava a sua disposição para uma faxina cronometrada, quase marcial,
por todos os cantos da casa. Era de subir poeira pelos vãos das janelas e
frestas de portas. Isso, contudo, não era frequente. Lá uma vez ou outra,
apenas. Vésperas de carnaval, rolava Carlinhos Brown e Olodum. A vizinha nojenta
sabia que ela estaria com aquele abadá surrado, do último Carnaval que passara em
Salvador bebendo todas, beijando muito e suando em bicas. Dias bem diferentes
eram de Bach e Vivaldi, introspectivos, ensimesmados, em que fazia uma reflexão
ampla do estar no mundo e coisas que tais, sem jamais chegar a qualquer
conclusão. Nesses dias, a vizinha nojenta nem notava sua presença no edifício,
a não ser que o som estivesse alguns decibéis a mais. Invariavelmente pela
época das festas juninas, só rolavam as sanfonas de Luiz Gonzaga, Sivuca e Dominguinhos.
E se espalhava pelo corredor um cheiro doce de pamonha, bolo de milho e canjica.
Quando o bicho estava pegando mesmo, ensurdecia o andar com Deep Purple e Black
Sabbath, de baixar polícia no local a pedido de vizinhos de vários andares. A
vizinha nojenta era a única a não reclamar, pois gostava daquela zoeira
ensurdecedora. E era o só momento em que ela e a vizinha nojenta estavam
acordes em gosto musical. Quando amanhecia de ressaca, a boca amarga, o
horizonte fechado a cadeado, punha a tocar Maysa ou Marisa Gata Mansa. E, se
fosse caso grave de dor de cotovelo, baixava a guarda totalmente com Nélson
Gonçalves e Lupicínio Rodrigues, sem o mínimo constrangimento de revelar a idade.
Lá
um dia pôs a rodar a Sonata Patética de Beethoven. A vizinha nojenta
estranhou. Nunca ouvira tal som, nos tantos anos de convivência de portas laterais,
no corredor daquele antigo edifício residencial, nas proximidades do centro da cidade.
Mas teve de sair para ir ao banco. E atribuiu a música às esquisitices da
moradora do quinhentos e três, como de hábito.
Ao
voltar, ainda pegou, do início, a Marcha Fúnebre de Chopin, o que a
deixou ainda mais preocupada. Entretanto entrou para seu apartamento e tocou a
vida, com os afazeres domésticos e os estudos em linha, para o trabalho final
do curso.
Ao
final da Marcha, fez-se um silêncio sepulcral no pavimento.
Não
muito tempo depois, a vizinha nojenta percebeu entrar sob o vão inferior da
porta um filete de água cor de rosa. Abriu a porta, a fim de descobrir a origem
do vazamento, e constatou vir da vizinha musical ao lado. Tocou a campainha
algumas vezes, sem sucesso. Como a água continuasse a escorrer também pelo
corredor, interfonou ao zelador, comunicando o problema.
Rapidamente
fez-se um ajuntamento de vizinhos à frente da porta, a qual, por mais que se
tentasse, não foi aberta.
O
zelador providenciou a vinda de um chaveiro e solicitou a presença de
testemunhas, para que pudesse entrar no apartamento.
Lá
no fundo, na banheira a extravasar água cor de rosa, estava o corpo inerte da
mulher, com os pulsos cortados a gilete.
Ironicamente
foi a vizinha nojenta que providenciou os trâmites dolorosos para sepultar a
vizinha musical, que morrera sem ninguém a se preocupar com ela, uma vida
solitária à procura de possibilidades impossíveis.
Nesse
dia, ela e a vizinha nojenta fizeram tudo bem diferente do que haviam feito
durante aquele tempo de estranhamento.