Asfalto&Mato
contos, crônicas, poesias e dedos de prosa
15 de agosto de 2025
AONDE VAIS, LINDA GABI?
29 de julho de 2025
VINDIMA
Ter as mãos prontas para as bagas
e usá-las com carinho
sobre os seios
cujo sumo alimentará os sonhos.
A verdade estará
a partir daí
no líquido encorpado
que se há de produzir e guardar
em tonéis envelhecendo…
Nossas línguas se soltarão
ao sabor do vento sobre a videira
e nossos corpos experimentarão
o agridoce sopro
desta vindima farta.
Vindima, por Francesco Gioli (1846-1922), colhida em meisterdruck.pt. |
8 de junho de 2025
UTOPIA*
Eu quero uma casa no canto
De um lugar qualquer
De um jardim sofrido
No fim de uma rua insólita
Eu quero me esconder do
mundo
Viver à margem do tiroteio
Do golpe cibernético
Do esculacho do meliante
Do imposto escorchante
Da política comezinha
Eu quero uma casa se tanto
Num canto qualquer
Ou um mocambo
Em que encontre
A paz e o sossego
E um pouco de água fresca
Para abrandar o sofrer.
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*Motivado pela canção Casa no campo, de Tavito e Zé Rodrix.
21 de maio de 2025
MAIS UM OUTONO
18 de abril de 2025
REMORSO
- Remorso, moço, é um troço embaraçoso que atravessa o peito da gente como uma flecha encastoada bem no meio do coração. Digo isso, porque penso agora numa tia, que passou parte da vida de casada implicando com meu tio e o seu gosto de beber cachaça, jogar carteado e torcer pelo Fluminense, e depois ficava diante da tevê, nos jogos do Tricolor, os olhos marejados d’água, assim que ele se finou. Rigorosamente ela nem sabia para que lado torcer, mas gastava os noventa minutos, incluindo o intervalo e os acréscimos que dá o juiz, imóvel na frente do aparelho. E passava todo o tempo da partida com os olhos fincados na tela, como se o procurasse, em vão, entre os torcedores.
Tão logo o jogo acabava, ela ia para frente
da imagem de São Judas Tadeu, que era o santo da devoção dele, embora nunca
tenha entrado numa igreja, a não ser quando se casou há não sei quantos anos, e
lá, olhando fixo os olhos da imagem, fazia seus pedidos, suas orações, para que
aquele remorso se findasse, como se finou seu marido, meu tio de muito boa lida
com toda gente, que morreu dormindo como um passarinho, na mais santa paz. E
acho que também pedia para que, caso fosse digna de misericórdia, se finasse
tal qual ele mesmo, de modo a purgar esse remorso que enchia seu coração de dor
e de tristeza.
Certa vez, sua filha mais nova, que, por não
se ter casado, ainda morava com ela, a viu mexendo numas camisas antigas dele, nas
quais passava as mãos como se as acarinhasse. Até cheirar, ela cheirou. E
encostou a fralda da camisa no seu rosto. Essa filha, minha prima, depois me
contou isso e ficou imaginando o que se passava com a mãe. No fundo, bem lá no
fundo, ela desconfiava das razões, porque foi testemunha das malquerenças dela
com o pai, sobretudo nos anos finais da convivência dos dois.
E o meu tio, enquanto vivia seus dias até a
morte, levava na mesma batida de sempre o seu viver distraído, sem se amofinar
com as caturrices dela, bebendo sua cachacinha de alambique, jogando seu
baralhinho de fim de tarde e gritando gol, como se estivesse na arquibancada do
campo de futebol, quando o seu time metia a bola na rede do adversário. E era o
instante em que ela, de rabugice, às vezes quebrava um copo de propósito,
deixava cair uma vasilha no chão, para atrapalhar aquele momento de prazer que
ele tinha. Sobressaltado, ele virava a cabeça a indagar dela o que ocorrera, e
ela, com certa antipatia, respondia entre dentes que não havia acontecido nada,
que ele podia voltar a se preocupar com o seu jogo. Aliás o seu maldito jogo!
Na vila ninguém sabia disso, pois ele jamais
reclamava com os amigos, mesmo que estivesse amuado. E, por vezes, descontava a
chateação com uma tacada vigorosa na bola sete – morre não morre na boca da
caçapa –, momento em que vibrava o taco como uma espada em duelo e aproveitava
para pedir mais uma dose de calibrina, que sorvia de um só trago, estralando a
língua ao final, seguido de uma careta.
Tempos depois, ao morrer numa madrugada
sombria, sem um ai, sem um tremelique no corpo, deixou atrás de si uma espécie
de alívio, nas palavras da minha tia, que não atinou naquele momento para as
consequências da sua ausência. Penso mesmo que ela foi incapaz de perceber que
o amava, ao mesmo tempo em que implicava com ele. É que ela era uma mulher enquizilada,
de mal com a vida que tinha, repleta de apertos e privações, que sempre atribuía
a ele e à sua vida um tanto insensata.
Daí pra diante, moço, o remorso remoía dentro
dela feito uma verruma rombuda procurando furar madeira dura, numa gastura
diária que parecia sem fim. Mas tinha a esperança de que, um dia, aquilo se
aquietasse, e esse remorso se findasse, como tudo se finda na vida, como meu
próprio tio se findou e ela também iria se findar.
Tempos depois, quando minha tia morreu, levou
consigo um semblante serenado, como se meu tio tivesse passado, lá do além para
onde foi, uma borracha definitiva sobre tudo o que sofreu com ela. Eu, que
sabia de toda a história e estava presente no velório, senti isso: meu tio foi
capaz de perdoá-la no momento derradeiro.
- E, por acaso, eu conheci essa sua tia,
rapaz? Esse seu tio?
- Conheceu não, moço. E acho que só relatei isso
para dizer como o remorso é esse troço embaraçoso na vida da gente.
John Williams Waterhouse, O remorso de Nero, 1878 (imagem em Wikimedia Commons).
14 de março de 2025
A VIZINHA NOJENTA
Nem
todo dia ela fazia tudo sempre igual.
Às
vezes acordava um pouco mais tarde e não punha um disco do Chico para rodar. Por
vezes, Paulinho ou Monarco. Quem sabe Xangô da Mangueira, se a ancestralidade
batesse forte. E mantinha seu estado de espírito saracoteante assim até o fim
do dia. Se acordasse feminista, como nos tempos acadêmicos, tocava Teresa Cristina,
ou Dona Yvone Lara. Se engajada e debochada, era Tom Zé. Se reivindicatória, Lecy
Brandão, ou, mais contundente, Racionais MC's. No dia em que começava com
Piazzola e sua María de Buenos Aires, estava virada no cão, perigava
esfaquear aquela vizinha nojenta, que teimava com Bruno e Marrone ou outra
dupla sertaneja de menor figuração. Havia dias de Tom e Vinícius, sobretudo às
sextas-feiras com suas promessas enganosas de amores possíveis e conforto de corpos.
Se punha a tocar Wando, a vizinha nojenta sabia que não teria sossego pela
madrugada afora, com os gemidos e sussurros a ultrapassar a tênue parede de drywall,
entre seus apartamentos. E a veria, insuportável, escancarar o sorriso, na manhã seguinte, ao som de Sérgio
Sampaio, pondo seu bloco na rua, ou Gonzaguinha, vivendo sem a vergonha de ser
feliz. Quando, bem lá do fundo, subia um Ravi Shankar e seu sitar insinuante, com
o odor de incensos a compor o ambiente, a atmosfera bicho-grilo que ocorria
pela lua cheia, a cada mês, dava o tom da noite. Celibidache regendo o Bolero
de Ravel indicava a sua disposição para uma faxina cronometrada, quase marcial,
por todos os cantos da casa. Era de subir poeira pelos vãos das janelas e
frestas de portas. Isso, contudo, não era frequente. Lá uma vez ou outra,
apenas. Vésperas de carnaval, rolava Carlinhos Brown e Olodum. A vizinha nojenta
sabia que ela estaria com aquele abadá surrado, do último Carnaval que passara em
Salvador bebendo todas, beijando muito e suando em bicas. Dias bem diferentes
eram de Bach e Vivaldi, introspectivos, ensimesmados, em que fazia uma reflexão
ampla do estar no mundo e coisas que tais, sem jamais chegar a qualquer
conclusão. Nesses dias, a vizinha nojenta nem notava sua presença no edifício,
a não ser que o som estivesse alguns decibéis a mais. Invariavelmente pela
época das festas juninas, só rolavam as sanfonas de Luiz Gonzaga, Sivuca e Dominguinhos.
E se espalhava pelo corredor um cheiro doce de pamonha, bolo de milho e canjica.
Quando o bicho estava pegando mesmo, ensurdecia o andar com Deep Purple e Black
Sabbath, de baixar polícia no local a pedido de vizinhos de vários andares. A
vizinha nojenta era a única a não reclamar, pois gostava daquela zoeira
ensurdecedora. E era o só momento em que ela e a vizinha nojenta estavam
acordes em gosto musical. Quando amanhecia de ressaca, a boca amarga, o
horizonte fechado a cadeado, punha a tocar Maysa ou Marisa Gata Mansa. E, se
fosse caso grave de dor de cotovelo, baixava a guarda totalmente com Nélson
Gonçalves e Lupicínio Rodrigues, sem o mínimo constrangimento de revelar a idade.
Lá
um dia pôs a rodar a Sonata Patética de Beethoven. A vizinha nojenta
estranhou. Nunca ouvira tal som, nos tantos anos de convivência de portas laterais,
no corredor daquele antigo edifício residencial, nas proximidades do centro da cidade.
Mas teve de sair para ir ao banco. E atribuiu a música às esquisitices da
moradora do quinhentos e três, como de hábito.
Ao
voltar, ainda pegou, do início, a Marcha Fúnebre de Chopin, o que a
deixou ainda mais preocupada. Entretanto entrou para seu apartamento e tocou a
vida, com os afazeres domésticos e os estudos em linha, para o trabalho final
do curso.
Ao
final da Marcha, fez-se um silêncio sepulcral no pavimento.
Não
muito tempo depois, a vizinha nojenta percebeu entrar sob o vão inferior da
porta um filete de água cor de rosa. Abriu a porta, a fim de descobrir a origem
do vazamento, e constatou vir da vizinha musical ao lado. Tocou a campainha
algumas vezes, sem sucesso. Como a água continuasse a escorrer também pelo
corredor, interfonou ao zelador, comunicando o problema.
Rapidamente
fez-se um ajuntamento de vizinhos à frente da porta, a qual, por mais que se
tentasse, não foi aberta.
O
zelador providenciou a vinda de um chaveiro e solicitou a presença de
testemunhas, para que pudesse entrar no apartamento.
Lá
no fundo, na banheira a extravasar água cor de rosa, estava o corpo inerte da
mulher, com os pulsos cortados a gilete.
Ironicamente
foi a vizinha nojenta que providenciou os trâmites dolorosos para sepultar a
vizinha musical, que morrera sem ninguém a se preocupar com ela, uma vida
solitária à procura de possibilidades impossíveis.
Nesse
dia, ela e a vizinha nojenta fizeram tudo bem diferente do que haviam feito
durante aquele tempo de estranhamento.