Para ficar
bem ao gosto do marido, engrossou o caldo do feijão, porém, com vidro moído, em
tão grande quantidade que dispensava a farinha de mandioca de que ele gostava
tanto.
O homem,
capitão de todos os naufrágios, traste de todas as canalhices, sentou-se à mesa
e ainda exigiu a pimenta malagueta que ele mesmo curtira com alho, cebola,
grãos de pimenta-do-reino, azeitona e azeite extravirgem de boa qualidade. A
pimenta cuspia fogo. No dia seguinte, ele passou a cuspir sangue.
O misturado
que fez, juntando aos dois ingredientes o arroz requentado, fatias de um bife
do almoço com molho ferrugem acebolado, uma sobra de jiló guisado, desceu
queimando, escalavrando o esôfago e chegando ao estômago como uma dose dupla de
formicida Tatu.
Achou que
fosse obra da demoníaca pimenta:
- Eta,
pimentinha repuxada na ardência!
Suavizou a
queimação com goles de cerveja preta, que bebia fazendo barulho goela abaixo,
soltando um arroto espaventoso a cada trago.
Era um porco
insuportável.
Mas no dia
seguinte começou a botar os bofes para fora.
A mulher
fizera uma promessa a São Clemente, aquela rua que fica paralela à Voluntários
da Pátria, na cama do namorado novo, rapaz entregador do mercado, que descobriu
na cliente a fonte das delícias. Nem na bancada das frutas da estação
encontrara tanta doçura, quanto no corpo da mulher, Giovana de nome de batismo,
Gigi na intimidade dos lençóis. Pelo menos, era o que ele lhe confessava.
Gigi
resolvera aplicar o par de chifres de veado campeiro no marido, quando
descobriu que, além das falhas de caráter de que era portador com méritos desde
o berço mais pequetito, ele mantinha a jovem Ritinha, balconista da lanchonete
da esquina, tão enfeitada quanto morto ilustre.
Do par de
chifres ao feijão engrossado com vidro moído, foi questão de ouvir uns ipsilones
bem solfejados ao ouvido durante o entrevero carnal numa tarde de sábado chuvoso.
Nada há de mais sedutor que tarde de sábado chuvoso. Ainda mais nos braços fortes
de entregador de mercado, jeitoso que só ele para dizer coisas bonitas para
mulheres desinfelizes no casamento.
- Empacota o
corno, Gigi minha flor! Vai ser a única coisa que vou lhe pedir na vida, Gigi
minha flor. Depois a gente faz a nossa vida.
Discutiram
depois, enquanto recolocavam as roupas, os pormenores da passagem que o marido
deveria fazer e optaram pela solução do vidro moído, conforme Gigi lera em
alguns dos contos de Os mágicos
municipais, livro que ele lhe presenteara há pouco. Neles, a mulher sempre
despachava o traste a poder de vidro moído, sem que a polícia aparecesse nas
linhas finais das histórias, para prender a homicida.
O entregador
se incumbiu de moer o vidro, que deu à mulher durante a entrega de uma
encomenda do supermercado.
Ela só esperou
que, na próxima noite de quarta-feira, Givanildo chegasse um pouco mais tostado
do botequim da Rua Paulo Barreto, onde se reunia com os amigos para ver o jogo
pela tevê, e não atinasse no tempero diferente do pretão maravilha.
Para que o
marido não percebesse, caprichou no alho refogado com cebola e louro, torresminhos
de toucinho defumado, cominho em pó e bastante pimenta-do-reino. Se ele estivesse
no completo controle de seu discernimento, sem a cuca cheia de álcool, talvez
notasse algo estranho. Naquele estado, porém, sentiu apenas o tempero
caprichado de Giovana.
- Esse
feijão está nos trinques, mulher! É o melhor que você já fez na vida.
E comia com
a boca dos famintos.
Foi a sua
desgraça!
Quando chegou
ao hospital e tomou lavagem estomacal, já perdera mais sangue do que a
cervejada bebida na véspera e empacotou por falta do combustível do corpo.
Sua alma
desacorçoada ainda bambeou um pouco, antes de abandonar o corpo inerte na maca
do corredor do hospital público.
Quando a
polícia bateu à porta do apartamento de Giovana, ela já dera linha na pipa com
o entregador, que teve a foto publicada no jornal das sete como procurado por
ter induzido ao crime uma mulher até então recatada e pudica, como atestaram os
vizinhos.
Não era a
primeira vez que Marcílio, o entregador, aprontava para cima de mulheres mal-amadas.
E Gigi fora apenas mais uma de suas vítimas. Sempre induzidas a despacharem o
marido a poder de feijão ao vidro moído, uma arma quase infalível.
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