Cara, eu ando muito emotivo por esses dias. Está-se
aproximando o aniversário de morte de minha mãe, e a saudade dela aperta
gentilmente meu coração. Foram muitos anos partilhando a vida com ela – quase
setenta e cinco -, para que tudo caia no esquecimento. É impossível isso se dar!
[Minha mãe me deixa ler, tão logo aprendi, Canção
do exílio e outras poesias, de Casimiro de Abreu.]
Além de tudo, cara, resolvi, não sei por que motivos, rever
vídeos – diversos deles – de Scott Mckenzie cantando seu sucesso, San Francisco
(Be sure to wear flowers in your hair), de 1967, em que se sucedem imagens
da linda geração hippie presente ao festival de Woodstock, em agosto de 1969. E
isso só piorou a situação.
Ah! Você não conhece as imagens? Procure, então, o
documentário sobre o festival, que compreenderá o que digo.
Julgo-me uma pessoa razoavelmente racional, quase nada saudosista,
que imagina controlar suas emoções sem muitas dificuldades. Mas devo confessar,
cara, que rever aquelas imagens de jovens que tinham como proposta maior um
mundo de paz e amor aprofunda ainda mais minhas emoções. Juntaram-se as duas
coisas, para que a emoção fervilhe dentro de mim.
[Sempre que me escrevia, no final de suas
cartas, minha mãe destacava a frase: “Que Nossa Senhora de Fátima te proteja!”]
E veja bem: nunca fui hippie, no sentido pleno do termo, embora
tenha cultivado barba e cabelos longos durante alguns anos, tenha sido abduzido
pelo som revolucionário do rock and roll e tivesse acreditado que aquela música
poderia mudar o mundo, por seu poder de reunir pessoas numa grande
confraternização. Eu cria nisso de verdade, cara!
[Minha mãe redobra as orações, ao saber que eu
perdera a fé.]
Mas jamais fui hippie realmente. Eu necessitava trabalhar
para me manter. E não era fazendo artesanato. Nem tive pais ricos que
sustentassem aquele comportamento desinteressado do sistema, a não ser para
bombardeá-lo. Também nunca precisei de “fazer a cabeça”, como se dizia então,
para curtir um som e viajar na pancada do rock. Eu era um careta esclarecido.
[Minha mãe sempre apoiou minhas escolhas, até
quando resolvi vir para Niterói cursar Letras, em detrimento de um emprego
estável no Banco do Brasil.]
Mas aquelas imagens, que são minhas contemporâneas,
deixaram ainda mais vivo o sentimento de frustração pela derrota das propostas
de paz e amor surgidas na cidade californiana, como se pode perceber pelo mundo
em que vivemos até hoje.
[Minha mãe vivia orando pela paz no mundo.]
Embora o movimento hippie fosse extremamente positivo
quanto a essa proposta, a prática de então se perdeu no consumo de drogas e
numa prostração infrutífera em fazer valer aqueles postulados. Sobraram as
imagens. Sobraram as tocantes, sensíveis, belas e bem-humoradas imagens de uma
geração que alterou o comportamento das que vieram posteriormente.
Por isso, cara, estou aqui, agora, bastante emotivo,
digitando essas bem-traçadas linhas, numa tentativa de alimentar um papo com
você, ou pelo menos esperando que você me ouça, e lamentando que todo aquele
sonho deu em nada. Não se conseguiu nem mais paz, nem mais amor. Aliás, muito
ao contrário. É só olhar à nossa volta e ver o que acontece.
[Quando nasceu meu primeiro filho, minha mãe veio
em meu apoio: eu deixava de ser apenas filho e me tornava pai.]
E, para agravar o que sinto, mais para o fim de agosto,
fará um ano que minha mãe se foi. Então vou procurar me comportar como um
menino grande, que já entende a vida, que sabe os desígnios da natureza, o jogo
sujo dos interesses geopolíticos, para aceitar numa boa essa pequena tragédia
pessoal: a perda da mãe e a ruína dos sonhos de um mundo melhor. Vou controlar
minha emotividade, ser um pouco mais racional. Parar de chorar como um bebê
abandonado.
Talvez minha mãe fique orgulhosa de mim, cara.
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Caso queira assistir ao vídeo da música citada, é só clicar sobre seu título no terceiro parágrafo.