Bateu palmas ao portão da
chácara, bem perto de um pé de pau frondoso, certo tipo autonomeado Lacavinha Pederneiras,
oriundo das bandas de Mata-Cavalos, nos afundados de terras goitacás.
- Boas tardes! Sou Lacavinha
Pederneiras, dos Pederneiras campistas, e venho da parte do afamado Zé Cândido
de Carvalho, do qual porto missiva de próprio punho e selo, destinada à sua
pessoa.
O tipo parecia uma alegoria
dos carnavais das Grandes Sociedades da década de vinte, que puxavam seus préstitos
pela antiga Avenida Central, por essa altura já batizada com o nome do barão do
império. Chapéu de palhinha, terno de riscado de corte apertado, cujo paletó se
abotoava tronco acima, deixando apenas, na altura do gogó, espaço para a
gravata borboleta de pois a enfeitar um pescoço fino, como de resto toda
aquela figura saída de traços de J. Carlos. Uma bengala de ponteira prateada e
sapatos de cromo preto reluzente, bico fino, com detalhes bordados no couro, em
feitio de bolhas de sabão, mais um lenço de duas pontas azuis a saltarem do
bolsinho do paletó completavam a personagem. Era propriamente uma figuraça!
O nome não me era desfamiliar.
Já ouvira referências um tanto desabonadoras à sua pessoa em páginas impressas
do mago da Baixada Campista. Lacavinha, a bem dizer, vivia de expedientes, sem
emprego engastalhado nele por mais de noventa dias ou três luas, e se prestava
a esse tipo comezinho de função: fazer favores fáceis para gente que não se
queria dar o mínimo trabalho com coisas de somenos importância.
Falei em voz alta, que
pudesse ser ouvida no meio do bulício da rua infestada de veículos com motores
à explosão e o tropel de uma carroça que passava justamente naquele instante:
- Pois se adentre, seu
Lacavinha Pederneiras! Se aprochegue de lá!
Lacavinha desferrolhou o
portão de ferro fundido, de um verde musgo já descascado pelos anos, passou com
sua figura esguia por apenas dois palmos de abertura, tornou a aferrolhar o
dito portão e veio evoluindo em minha direção, como se flutuasse sobre o
caminho tortuoso de pedras assentadas no chão, até o alpendre onde eu estava.
Convidei-o a se sentar, pedi
à Carlinda que nos trouxesse um café fresquinho e tratei de pegar a
correspondência que me estendeu com sua mãozinha magra, quase esquelética,
unhas de brilho esmaltado bem aparadas.
- Pois muito bem, seu
Lacavinha, vamos ver o que o Zé Cândido tem a me dizer em suas bem traçadas
linhas!
Nesse entrementes é que me
dei conta de que o remetente já não comia angu com feijão, já não folgava mais
entre nós, motivo por que quis saber se era carta pretérita, deslembrada em
alguma gaveta de escrivaninha e só agora, anos escorridos, chegada a seu
destinatário.
O portador disse que não, que
era coisa hodierna, recentemente vinda à luz, de tinta ainda úmida, através de
psicografia realizada na cidade de Campos dos Goytacazes, com ipsilone e tudo,
por pessoa idônea, há muito versada nessas práticas.
Ajeitei as meias cangalhas
de leitura sobre o pau do nariz, rapei o gogo da garganta sem a cerimônia
devida – mas enfim eu estava em meus domínios –, rompi o lacre do selo bordado
JCC com jeito, a fim de não esparramar migalhas nas tábuas do alpendre e me pus
a ler em silêncio, dando muxoxos aqui e ali, conforme os olhos iam vencendo os
eitos da escrita de letra caprichada do campista afamado.
Depois dos cumprimentos de
praxe a encabeçar a mancha de tinta da folha, fui-me inteirando das
preocupações, perquirições e diretivas do remetente.
“Andei
sabendo por vias travessas, aqui onde me homizio presentemente em forma
espectral, que você anda tomando intencionamento de pôr pontos finais no meu
inacabado romance sobre o Rei Baltazar, de bíblicas memórias. Sei, inclusive,
que andou assediando mais de um familiar, cravando perguntas aqui e ali,
levantando hipóteses mirabolantes, maquinando finalmentes para minha obra inconclusa
e inacabada sobre o tal rei.
Devo
asseverar com toda pompa e circunstância que ninguém no mundo dos viventes tem minha
concessão para tais intencionamentos. O Rei Baltazar será lembrado apenas com
as poucas palavras com que foi brindado no texto bíblico e nada mais. Ninguém
vai puxar brasa para sua sardinha se prevalecendo do que eu já tinha alinhavado
aí embaixo, enquanto mourejava na imprensa local e enchia as burras do povinho
das rotativas com meus escritos.
Tenho
dito!”
E lascou embaixo sua
reconhecida assinatura de escritor notável.
Achei Zé Cândido amargurado,
sorumbático, abespinhado. Só porque eu tivera – veja bem, amigo leitor! – eu
tivera a ligeira ideia de completar a obra que ele deixara incompleta, por
conta da visita antecipada da Indesejada. E apenas andei sondando, no rol dos
meus mais chegados, se alguém, por acaso, assim descompromissadamente, conhecia
pessoa das relações do grande escritor, algum herdeiro, talvez o seu editor.
Mas tudo dentro da mais sutil averiguação, sem estardalhaço ou jactância. Não
sou dado a espalhafato e ostentação. Sou mais recolhido que surucucu no choco.
Depois de lida a missiva do Além
e após um suspiro de arrebentar estaca, que me veio bem lá do fundo da minha
pessoa, indaguei do indigitado Lacavinha Pederneiras, ali presente, a pele
macilenta de vela de sete dias, como responder a carta, já que eu não tinha o
endereço correto e confirmado do destinatário.
Lacavinha sorriu, tirando
com a unha comprida do mindinho direito uma sujeirinha do fura-bolo da mão
esquerda, e me disse com o olhar perdido no pé de pau da entrada da chácara:
- É só me dizer de suas boas
tenções, da sua reconsideração, que faço chegar ao autor da missiva esse seu
pendor inopinado.
- Pois pode garantir lá a
ele, do jeito que possível for, dentro das leis das ciências física e
metafísica, que não está aqui aquele com quem se preocupar. Vou continuar lendo
e relendo os livros que as rotativas imprimiram, mas não vou me arvorar a pôr
um finalmente no que ficou sem fim. Sem fim ficou, sem fim ficará! Dou minha
palavra!
Lacavinha Pederneiras elevou
sua pouca pessoa da minha cadeira de palhinha da varanda, levantou o chapéu,
fez uma mesura com o tronco magro fechado a botões e se despediu, sem me
estender a mão. Desceu os quatro degraus até o caminho de pedra, começou a caminhada
em que parecia flutuar, até que desapareceu como que esfumaçando, desvanecendo
seu corpinho miúdo por entre a ramagem do pé de pau próximo ao portão da rua,
de não ser divisado do outro lado, embaixo ou em cima de coisa alguma.
Zé Cândido certamente
saberia da minha resposta.