Só mesmo o fantasma do tio
Prudêncio para viver – se é que fantasmas vivem – em meio a ratos, baratas,
aranhas e suas teias, debaixo da casa fincada em frente ao terreirão imenso.
Bem, pelo menos, era o que se dizia e aquilo em que o povo das redondezas
acreditava piamente. Eu, um dos seus sobrinhos mais velhos, não tinha tanta
certeza, mas também não duvidava em demasia. Vai que fosse verdade!
O que ocorreu para que a alma do
meu tio permanecesse por tanto tempo naquele canto, sem ter subido ao céu, como
queria toda a família, mesmo após todas as encomendações, é a história que me
dispus a contar aqui a vocês, muitos dos quais só ouviram dele falar, já que
nasceram depois desses acontecimentos. E não vou contar, só para me pavonear de
herói. Vou ficar rente à verdade do que ocorreu.
Era uma noite fria de agosto e,
em volta da mesa grande da casa, reunia-se parte da família do Prudêncio, homem
que tinha vindo de lugar distante ainda jovem e fincara raízes ali na região,
ao se casar com a filha mais nova de um comerciante de secos e molhados, com
estabelecimento bem sortido na rua principal da vila.
Era a Carlinda. Carlinda tinha
como irmã mais velha a Engrácia, mãe do parente que agora se dispunha a contar
aos mais novos as peripécias que fizeram encastoar no vão inferior da casa da
fazenda a alma desacorçoada do seu tio emprestado, como era comum se dizer para
tais tipos de laços de família. Isso mesmo: tio emprestado. E de como ela saiu
dali.
Dona Carlinda, a viúva, havia
preparado leite queimado com biscoitinhos quebra-quebra, para que todos
aproveitassem a noite em que seu sobrinho contaria a história do marido.
História que ela mesma não tinha coragem de contar, porque avivava certas
lembranças doídas que a faziam chegar até às lágrimas.
As crianças de várias idades,
netas e sobrinhas-netas de Carlinda, estavam de ouvidos atentos e olhos
arregalados. Não é qualquer uma que tem um avô ou um tio em forma de
assombração. Isso era coisa que se ouvia falar dos outros, de pessoas
distantes, afundadas em tempos de muitos janeiros chovidos e enlameados. Por
isso, certo alvoroço a rondar a grande cozinha da casa onde se reunia aquela
pequena plateia atenta.
Como eu dizia, tio Prudêncio
chegou por aqui com seus vinte e poucos anos, vindo de terra distante. Chegou a
cavalo e trouxe na algibeira as economias que guardara durante algum tempo,
mais o ajutório que o pai lhe dera, com o propósito de comprar uma quarta de
terra onde pudesse se estabelecer e começar vida nova. E veio também na tenção
de arranjar boa moça que com ele quisesse enfrentar os desafios que certamente
iriam aparecer. Tinha capital, sonhos e disposição para a lida. E – tia
Carlinda está aí para não me deixar mentir – era um rapaz bem apessoado e muito
simpático. Tanto que ela não resistiu à sua conversa bem-tramada e, ano e meio
depois, estava entrando de véu e grinalda com vovô Simplício, toda bonita de
noiva, na capelinha de Santo Antônio.
Dona Carlinda esfriou um pouco o
leite queimado, para não sapecar a língua das crianças, colocou no bule e
começou a servir as canequinhas de ágate que cada uma estendia a ela. O
alguidar com os biscoitos ficava no centro da mesa, à distância confortável
para que elas se servissem à vontade.
Zé Luís era o mais esganado dentre
eles e logo encheu a mão com uns quatro biscoitinhos quebra-quebra. Tanto que
levou pito da mãe, a lhe pedir educação. Estou na casa da vovó, respondeu ele,
a justificar aquele seu comportamento. O cheiro do leite enchia a grande
cozinha da casa da fazenda.
Pois tio Prudêncio e tia Carlinda, mal saíram da festa que vovô Simplício e vovó Aninha prepararam, e já estavam nos afazeres que a pequena propriedade requeria. Eles tinham a pressa da gente nova quando começa um negócio que, para ter futuro, exige muita disposição. E trabalharam duro, os dois, ali, bem duro mesmo! De sol a sol, sem se preocupar com tempo ruim! E, daí mais um tanto de anos passados, começaram a ter o retorno do seu trabalho. Enquanto isso, também começou a aparecer barrigudinho na família. Num prazo de cinco anos, já eram dois e um terceiro de encomenda. As coisas iam indo, iam ficando do jeito que os dois queriam. A criançada crescendo, e a propriedade aumentando com as novas aquisições que tio Prudêncio fazia aos proprietários vizinhos. Até que montou uma herdade bonita, com água farta, mata e plantação dividindo a terra com harmonia.
- Mas como é que o vovô Prudêncio virou fantasma, tio Celso? – perguntou impaciente a Rita, com seus cabelos louros a denunciar a descendência do lado dos alemães que se infiltraram na família.
Pois espere um pouco, que chego
lá. É preciso saber de tudo atentamente, para depois vocês terem argumentos
contra a língua ferina de gente mal-intencionada e invejosa. Que é o que mais
existe por aí!
Passado algum tempo, chegou à
vila um camarada vindo também de terras distantes, disposto a comprar a
propriedade do tio Prudêncio. Vinha já com informações sobre as benfeitorias
feitas pelo tio e a produção da fazenda. O tio não queria vender, que ele
gostava muito do que ele e tia Carlinda conseguiram fazer ali. Mas, sabem como
é, um homem afeito a negócios não pode se desvencilhar da ideia de ter bom
lucro, ganhar bastante dinheiro e até comprar uma outra fazenda ainda melhor,
como a Fazenda da Liberdade, uma joia de propriedade do lado oposto. Conversa
vai, conversa vem, e o tio Prudêncio acabou aceitando a oferta do desconhecido:
cinquenta por cento em dinheiro vivo de entrada, depositado na Caixa Econômica,
mais doze parcelas, em letra de câmbio assinada, avalizada e com firma
reconhecida em cartório, com vencimento a cada último dia útil do mês.
O nome desse homem era Gumercindo
Valente. Fez o depósito na Caixa Econômica, entregou as letras de câmbio ao
tio, pegou a escritura das terras e se aboletou na casa da fazenda um mês
depois de tudo assinado. Tio Prudêncio saiu com a família da casa e veio para a
vila, para esta casa onde estamos agora, e já tinha iniciado conversas com o
dono da Fazenda da Liberdade para tentar comprá-la.
No vencimento da primeira letra
de câmbio, Gumercindo alegou dificuldades e pediu mais um tempinho para saldar.
No segundo mês, a mesma cantilena. Do terceiro mês em diante, ele já não pagou
mais nada e descaradamente disse ao tio Prudêncio que fosse procurar seus
direitos na justiça. O tio começou a ficar doente, a se sentir mal, e, antes
que a última prestação vencesse, sem que ele visse a cor do dinheiro, acabou
morrendo de desgosto nos braços da tia Carlinda.
Naquele instante corriam lágrimas
dos olhos da viúva. As crianças a olharam com piedade, e um e outro foram
abraçá-la como tentativa de consolo. Zé Luís, o guloso, deu-lhe um beijo no
rosto, com os lábios cheios de migalhas de biscoito, e pediu que ela não
ficasse triste, que eles estavam ali com ela.
Pois vamos continuar a história,
que já está chegando ao fim.
Foi um pouco depois de
enterrarmos tio Prudêncio que começaram os boatos de que sua alma estava
aparecendo para a família do Gumercindo Valente. Contavam que alguns até viram
o vulto, que atiçava os bichos de criação à noite. Gumercindo encomendou ao
padre responsável pela capela da vila uma benzedura boa para desalojar almas
penadas. Mas de nada adiantou a água benta espalhada em volta da casa.
A situação foi ficando cada vez
mais difícil para o caloteiro, que, volta e meia, era assombrado pela alma do
tio. Mas o homem era mais empacado que burro chucro e não arredava o pé dali.
Até que tempos depois do negócio fechado, quando fazia aniversário da morte do
tio Prudêncio, peguei todas as letras de câmbio com tia Carlinda, chamei meu
irmão e meus primos, metemos os trabucos na cintura e chegamos de supetão na
porta da casa do homem, bem cedinho, para cobrar a dívida na marra, na base da
ignorância. Éramos cinco homens determinados, de cara fechada e mão no cabo do
pau de fogo. Gumercindo foi pego de surpresa. Mal tinha acabado de se levantar
e ainda nem tomara o café da manhã. Seus filhos pequenos e adolescentes ainda
dormiam. Só sua mulher estava acordada.
Então eu lhe disse com toda a
firmeza, os dentes fechados, que ou ele pagava naquele instante e em dinheiro
vivo, ou poderia arrumar suas tralhas, pegar seus filhos e a mulher e cair no
mundo, não ficando em distância menor de cem léguas da fazenda, sob pena de
viver como bicho fugido a ser caçado sem dó, nem piedade. A gente iria atrás
dele, até que ele fosse escorraçado como praga ruim que era. Quando ele tentou
levantar a voz e argumentar que não podia sair assim de uma hora para outra,
nós cinco fechamos a roda em volta dele, e eu disse feroz:
- Estes são nossos termos. Não há
negócio.
O homem, desesperado, mandou a
mulher acordar as crianças, arrumar os trens, meter tudo na charrete, e, em
pouco mais de duas horas, vimos a sede da fazenda desocupada, Gumercindo já
fazendo a curva da estrada que beirava o valão, levantando uma poeirinha fina a
filtrar os primeiros raios de sol. E dele nunca mais tivemos notícia.
Tia Carlinda, avisada do nosso
sucesso, ficou muito feliz, mas não quis voltar para a fazenda, por causa das
lembranças que lhe doíam e deu para meu primo Fausto, seu filho mais velho, a
administração das terras.
Assim que Fausto entrou na casa,
chamou o mesmo padre para rezar missa em desagravo ao tio Prudêncio. Aquele
domingo foi de comemoração. O altar foi armado no terreirão em frente à casa, e
após a missa houve um churrasco para a vizinhança convidada para a festa.
Depois Fausto nos contou que,
naquela mesma noite, viu um vulto saindo do porão da casa e subindo rapidinho
para o céu, em direção à lua cheia que alumiava a noite estrelada.
Nunca mais se disse que a casa era mal-assombrada. Tio Prudêncio
pôde então descansar em paz.