27 de janeiro de 2020

CHORINHO

Não choro.
Vejo o céu desabar sobre nossas cabeças
Mas não choro.
O abismo se abrir à nossa frente
Intransponível e medonho
Mas não choro.
Sento-me sozinho no banco da praça
Infestada de pombos e camelôs
O trânsito caótico
A falta de dinheiro
E o troco minguado da passagem
Mas recuso-me a chorar.
Quando muito ponho na vitrola
Waldir Azevedo Jacob do Bandolim
Mas definitivamente não choro.

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Bandolim (imagem em jornalggn.com.br.

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Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em 25/8/2010.

16 de janeiro de 2020

PROCURANDO O AMIGO


Estou na sala, vendo velhos vídeos de música pela tevê. Neil Young era até bem jovem neste de agora. Já havia visto outros antes: Crosby & Nash; Crosby, Stills, Nash & Young; Yes; Amarok e alguns de rock progressivo francês.
Devo estar um pouco nostálgico hoje. Ou não! Como diria Caetano. Nunca se tem certeza disso.
Então me ocorreu procurar por um velho amigo das lides acadêmicas, que não vejo há anos. Mas como achá-lo, se não tenho mais nenhuma referência dele? Já era casado então, e eu sabia onde morava, frequentava sua casa. Conhecia-lhe a mulher e o filho. Mas há muito se separou, saiu de casa e foi viver com outra. O filho certamente já lhe deu netos. Sua ex-esposa nunca mais vi. O telefone não é mais o mesmo. E na época ainda não havia celulares.
Ocorreu-me, assim, tentar encontrá-lo nos lugares possíveis. Fizemos Letras – Português/Francês -, gostamos de ler, temos um humor semelhante, somos até conterrâneos, mas a Livraria Gutenberg, onde certamente ele devia ir, já não existe também. Botequins ele não frequentava. Nunca me ocorreu vê-lo virar um suado copo de cerveja.
Que opção, então, resta para tentar achá-lo? Pensei na idade que temos. Ele, inclusive, é alguns poucos anos mais velho que eu. Assim é provável que em alguma farmácia com entrega ele esteja na agenda.
Liguei para a Drogaria Tal (nome que inventei agora, para não fazer propaganda gratuita). O atendente foi solícito. Aproveitei para encomendar uma caixa de analgésico e lhe contei o verdadeiro motivo da minha ligação. Queria que ele conferisse em sua agenda se consta o nome do meu amigo. Falei da nostalgia, da saudade, essa coisa tão brasileira que, até mesmo no verão escaldante de Niterói, pode nos assaltar.
É bem verdade que ele achou meu desejo um tanto esquisito. Mas apelei para minha história com a farmácia. Visse ele quantas vezes tinha solicitado alguma entrega. E ele sabia meu nome, endereço, número de telefone, entre outros dados. Meu desejo era apenas uma saudade inocente. De velhos amigos que não se veem há tempos.
Falei ainda que meu sumido amigo deve morar no nosso bairro e talvez até fosse cliente do estabelecimento. Repeti seu nome. O atendente procurou no computador e encontrou. Contudo teve receio de me fornecer seu endereço e telefone. Para tentar uma segurança no atendimento, perguntou se eu imaginava que tipo de medicamento ele consumiria. Garanti-lhe que era difícil. No tempo da faculdade todos éramos bem mais jovens e não costumávamos consumir nenhum tipo de remédio de forma habitual.
- Mas o senhor não imagina, já que o conhece bem, o que pode estar incomodando a saúde dele hoje em dia?
Então fiquei refazendo a figura do amigo. Era alto, magro, branquelo, parcos cabelos já à ocasião, sorriso solto, galanteador contumaz, mas sempre de paletó, gravata e uma antiga valise James Bond. E trabalhava numa subsidiária da Companhia Siderúrgica Nacional. Era advogado e chefe do setor de seguros.
Achei que seus nervos não tivessem resistido ao estresse da ocupação e provocado avarias em seu estômago. Ah, e era homem frugal na alimentação. É isso! Meu amigo talvez tivesse problemas estomacais, que se agravaram com o episódio da separação e não lhe tenham dado sossego desde então.
- Veja aí se no registro das encomendas dele constam remédios para gastrite, úlcera, azia, coisas desse tipo.
O atendente levou alguns minutos conferindo os registros e me disse:
- Não! Nada desse tipo. Aqui, neste nome que o senhor me passou, apenas alguns analgésicos e vários daqueles remedinhos azuis. Se é que o senhor me entende. Infelizmente não é esse o seu amigo.
Puxa vida! Deve ser ele mesmo. O danado não teve nada de estômago e anda de saliências por aí.
Preciso encontrá-lo o quanto antes. Ele deve ter muitas histórias a me contar!

Diógenes de Sínope
Diógenes procurando um homem honesto, de
Johann Heinrich Wilhelm Tischbein (1751 – 1829),
1780 .

2 de janeiro de 2020

O TEMPO


Passou o tempo
E não percebi
Ainda ontem era a vila
As brincadeiras na rua
Os verões chuvosos
Os frios intensos do inverno
Hoje cedo
Eram os desejos e sonhos de jovem
Ainda há pouco
Os cuidados com os filhos
O amor pelos netos
Agorinha mesmo
Esse desespero
De não conseguir parar esta ampulheta
A verter a vida aos trambolhões
Inexoravelmente


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