Eu morava na pensão da Dona Dinorah
e tinha acabado de concluir o curso de Letras, na Universal Federal Fluminense.
Iniciava-se o ano de 1972.
Meu colega de pensão e conterrâneo
P (Omito-lhe o nome por respeito.) acabara de escrever uma peça de teatro e
pediu que eu a lesse e fizesse as observações que achasse pertinentes, com as
minhas recentes ferramentas críticas adquiridas no curso.
Até aquele instante eu
desconhecia esta sua habilidade, na verdade sua primeira obra. Não sei se fez
outras mais, nem se aquele texto foi encenado, pois pouco tempo depois perdi o
contato com ele completamente.
Pedi-lhe um prazo para
atender seu pedido, com o que concordou sem ressalvas, e iniciei a tarefa. Ao
cabo desta, chamei-o para apresentar minhas observações.
A peça tratava basicamente
de um diálogo filosófico entre uma prostituta e um bêbado, acerca das visões de
vida de cada protagonista. Pelo contexto, ficava-se a par da origem humilde da
prostituta e da decadência do bêbado, até chegar à condição que então
vivenciava, por culpa de seu vício. A peça lembrava a estrutura de Dois
perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos.
P era jovem, um pouco mais
novo que eu, interessado em arte e literatura, leitor assíduo, e portador de
uma visão pessimista e amarga da vida. Ensimesmado, raramente ria e tinha raros
amigos. Era mais comum vê-lo solitário, mergulhado em suas preocupações, saindo
sozinho nos finais de semana para um cinema, um passeio, um programa assim fácil
de se fazer a sós.
Durante a leitura do texto,
estive atento às falas das personagens, ao nível vocabular, à formulação de
frases, à logica do pensamento expresso por elas, e em dadas passagens mostrei-lhe
que algumas vezes o discurso não se adequava, sobretudo à prostituta, por sua
origem simples, que deixava transparecer falta de educação formal, já que havia
“entrado naquela vida” ainda adolescente. Por seu turno, era possível pressupor
que a personagem do alcoólatra poderia ter tido uma educação mais formal, o
que, no entanto, não ficava claro no contexto da peça.
Fui então apontando o que me
parecia sem adequação aos dois falantes, por seu passado e por sua história de
vida, sobretudo no uso de vocabulário e em torneios frasais mais elaborados, a
que normalmente só se alcança com uma educação mais elaborada.
Pois foi aí que arranjei um
desafeto. Ao final das minhas ponderações, ele franziu ainda mais a cara, pegou
seu texto de volta, reclamou que eu não tinha entendido a profundidade das
colocações das personagens. E deixou de falar comigo. Um pouco depois a pensão
se desfez – ia ser construído um prédio no lugar da casa antiga onde ela se
instalara –, e cada hóspede procurou nova direção para suas vidas.
Algum tempo depois – nem
tanto, nem tão pouco –, encontrei-o pela rua e fui até ele. Cumprimentei-o, reclamei
que ele andava sumido e quis saber do seu paradeiro. Solenemente, com a mesma
expressão com certa carranca, me disse:
- Você me encontra na Veja.
Como assim? Não havia
entendido o sentido da frase. E ele me esclareceu:
- Agora estou escrevendo na
Veja. Procure lá!
E saiu soberbo, como a me
dizer:
- Tomou, papudo! Criticou
meu texto, agora escrevo na Veja, e você é um reles professor.
Na semana seguinte, comprei
a revista e vi lá um pequeno texto que ele assinava, cujo assunto realmente já
não me lembra mais, e fiquei feliz por saber que ele tinha conseguido chegar àquele
estágio profissional, embora eu nunca tenha sabido que cursos ele tinha feito
na vida, a não ser o antigo Segundo Grau numa escola da nossa cidade.
Passaram-se outros tantos
anos, e eu então estava em Bom Jesus do Itabapoana, em visita à minha família.
Por problemas no carro durante a ida, precisei de ir a uma loja de autopeças
para comprar determinada peça para o carro. Quem eu encontro atendendo ao
balcão? O próprio! Sem soberba, sem orgulho, um tanto decepcionado em me ver,
estando ele ali numa função mais simples. Perguntei-lhe o que aconteceu para
que voltasse à nossa terra natal. Ele deu lá suas explicações, dizendo que
viver numa cidade grande para ele se tornara complicado e, assim, resolveu
fazer a viagem de volta, para que tivesse melhor qualidade de vida. Conversamos
amigavelmente por um tempo, sem que eu lhe perguntasse sobre sua carreira como
dramaturgo ou correspondente de Veja. Não queria avivar o que talvez pudesse
ser deixado no limbo.
Nunca fiquei aborrecido com
ele. Entendi-lhe a falta de humildade, quando fiz as observações sobre sua obra.
Um texto é quase como um filho. Se alguém pode falar mal dele, é o autor. E
ninguém mais! Sob pena de se tornar um desafeto.
E jamais o vi novamente!
Guardo certa saudade. Assim bem à moda dele: silenciosa, um pouco pessimista e
desalentada.
Talvez nossos caminhos e nossos textos não se cruzem mais.
Imagem colhida na Internet.