Lúcio já
estava no ônibus, quando entra uma nova passageira e se acomoda ao seu lado no
banco. Era uma loira descomunal, como avaliou mentalmente, assim que a olhou de
soslaio. Ela, simpática, deu-lhe bom dia e pediu licença para acomodar toda a
sua pessoa ao lado do psicologicamente boquiaberto Lúcio – na verdade, ele não
teve a coragem de abrir a boca e ficar com cara de bobo.
A partir daí,
a cabeça de Lúcio entrou em parafuso, num alvoroço de pensamentos como numa brain storm de que estava acostumado a
participar na agência de publicidade onde trabalhava.
Como uma
loira daquele porte, daquela envergadura, daquela compleição física soberba – e
que cabelos! -, poderia andar no prosaico transporte público e dividir o banco
com um reles mortal, que sinceramente nem tinha onde cair morto? Não haveria
nenhum ser humano, proprietário de uma Lamborghini, de uma Ferrari ou de uma
Maseratti, de uma – vá lá que seja – Alfa Romeo, disposto a transportá-la para
baixo e para cima? Para onde a loira quisesse ir, sem pestanejar, sem indagar
dos motivos? Como esse mundo é desajustado, continuou ele em suas caraminholas.
Por muito menos ela estaria em páginas de revistas masculinas, daquelas
antigas, fazendo o delírio da galera. Ou, caso seja recatada, num editorial de
moda, ou num comercial de produtos de beleza. E não! Estava tão somente ao seu
lado no ônibus.
Ele só não
reparara, tão logo ela entrou, se o pagamento fora em dinheiro ou num reles
cartão de bilhete único. Com certeza aquela loira não merecia possuir um
prosaico cartão de transporte público. Aliás nem deveria pagar passagem. Muito
ao contrário! A empresa concessionária deveria pagar para que ela viajasse em
seus ônibus e, então, fazer propaganda com ela, sorridente, segurando o cartão
a convidar os demais comuns dos mortais a utilizarem aquele mesmo ônibus.
Lúcio pensou
em lhe dar seu cartão de visitas e convidá-la a ir fazer um teste na agência
onde trabalhava. Aquela loira era um material humano a não ser desperdiçado, em
hipótese nenhuma. E, vá lá, haveria a possibilidade de vê-la outras vezes e,
quem sabe, até desenvolver uma amizade, seguida de uma afeição e de um louco
amor. Tudo é possível na vida, imaginou com exagerada autocomplacência. Até mesmo
o impossível!
A loira, sem
se dar conta de todo o frisson
causado no cavalheiro ao lado, abriu sua bolsa de onde tirou o celular, acessou
uma rede social – de rabo de olho, ele verificou se tratar do WhatsApp – e
começou a digitar freneticamente. A cada mensagem de volta, seu olhar se
iluminava mais e um leve sorriso começava a emoldurar seu rosto já por demais
perfeito. Lúcio estava atento aos mínimos movimentos da moça, sem que virasse a
cabeça. Apenas seus olhos flutuavam de um lado para o outro, a fim de tentar saber
mais alguma coisa da loira.
O ônibus já
havia passado por dois pontos, em que alguns passageiros desceram e outros
subiram. O próximo ponto, diante da pracinha onde se localizava o prédio da
agência, seria seu local de descida. Ele, porém, estava tentado a seguir na viagem
até onde a loira ficasse. Desceria um ponto depois dela e voltaria. Aquela era
uma oportunidade única de viajar com pessoa tão bonita ao seu lado. Jamais tivera
tal sensação. E ainda haveria a possibilidade de que, durante o trajeto, ela se
dignasse a lhe perguntar as horas ou fazer algum comentário bobinho sobre o
tempo, ou uma consideração mais séria acerca do aquecimento global. Não haveria
problema nenhum, caso chegasse alguns minutos atrasados naquele dia.
Antes que ele
acionasse o pedido de parada, a loira apertou seu mimoso dedo indicador,
decorado por esmalte de cor chamativa, sobre o botão colocado na coluna ao lado
do banco. Milagre, pensou ele. Ela desceria no mesmo ponto, diante da pracinha.
Por uma
questão de cavalheirismo – e, inconfessavelmente, para apreciar a pessoa da
loira em toda a sua exuberância pela retaguarda –, seguiu atrás dela pelo
corredor do veículo, mal conseguindo disfarçar para os demais passageiros, que
se viravam para olhar a loira, a admiração estampada na cara.
Com cuidado e
elegância sensual, a loira desce os degraus, segurando-se na coluna para não
forçar a saia justa, enquanto ele aguarda sua vez. Sem pressa, porém sôfrego, o
‘coração em desalinho’ como na canção, segue atrás dela, em procissão. A loira
caminha em direção à rua lateral da pracinha, também para onde ele vai. Seu coração
trepida como tamborim em ensaio de escola de samba, com instantes de surdo de
marcação. E imagina a possibilidade de que ela também vá até a agência de
publicidade.
Sem tirar os
olhos dela, a alguns passos à sua frente – ele faz questão de retardar a marcha
–, não percebe, parada na lateral da rua, quase diante do prédio onde trabalha,
uma Ferrari vermelha, conversível, com um motorista bem-vestido, de óculos
escuros e cabelos em elegante desalinho, como um modelo em peças publicitárias.
Ao se aproximar do carro, a loira faz um cumprimento jovial ao motorista, contorna o bólido, entra pela porta, que o homem abre desde seu assento, e se acomoda no banco de couro com o símbolo daquela máquina infernal. Dá um selinho naquele miserável, passa o cinto de segurança sobre seu peito deslumbrante, no instante em que, o motor já acionado, o desgraçado dá a partida no carro, acessa a avenida principal e some na descida da rua após o semáforo, deixando o coração do pobre diabo do Lúcio em frangalhos, desmontado como um velho carburador cheio de problemas.
Vida desgraçada,
pensou ele. Agora vou subir e terminar aquele maldito encarte de supermercado
com promoção de produtos de higiene e limpeza.