Eu fiz o maior esforço para
não ser da geração canivete, estando dois degraus após na escala geracional.
Vou-lhe explicar, leitor
amigo.
Algumas peças já fizeram
parte do vestuário das pessoas, às quais peças o tempo se incumbiu de dar fim.
Do homem, por exemplo, na primeira metade do século XX, eram o chapéu e a
bengala, ainda que não se claudicasse, ou que não houvesse sol queimando a
cabeça. Eram componentes da elegância masculina, sobretudo do habitante das
cidades mais cosmopolitas. É comum verem-se em fotografias antigas, em que se
juntam muitos, vários – ou todos eles – de chapéu, paletó e bengala.
No interior, até o momento
em que lá estive, os homens – quase todos, sem exceção, repito – possuíam um
canivete, que carregavam num bolso apropriado das calças, na algibeira. As
calças eram projetadas com dois pequenos bolsos na altura da cintura. Um era
feito exatamente com tal finalidade: acomodar o canivete. No outro, levava-se o
relógio, obviamente de bolso. O relógio de pulso foi um avanço na tecnologia.
E para que servia o canivete?
Ora, eram várias as suas utilidades: desde descascar uma fruta, picar o fumo
para o cigarro, como cortar as unhas e executar pequenos trabalhos em madeira. Às
vezes, em desavenças, ele poderia entrar como arma branca, sobretudo em briga
de moleques. Mas isto era muito raro.
Os meninos, depois de certa
idade, ganhavam um canivete de presente. Eu também tive o meu, que me servia
para descascar as laranjas da chácara do tio Alcides Almeida, para onde eu ia,
a seu convite, me sentar sob as árvores carregadas, com meu primo Carlinhos,
filho dele, a me fartar daquelas frutas de um paladar inesquecível.
Minha primeira calça
comprida, feita por minha mãe para os meus doze anos, tinha lá o bolsinho do
canivete.
Depois que cresci mais um
pouco, já em plena puberdade – a cara cheia de espinhas – resolvi não carregar
mais aquele instrumento perfurocortante, embora o tivesse guardado em alguma
gaveta de casa.
Ao terminar o Curso Científico,
antigo Segundo Grau, decidi vir para Niterói, na intenção de fazer o meu
sonhado Curso de Letras.
Ao arrumar a mala com alguns
apetrechos de higiene pessoal e a pouca roupa que tinha, meu pai se lembrou de
que eu deveria trazer o canivete. Naquele momento, eu rompi a corrente e lhe
disse que não o queria trazer. Ele se admirou pela recusa e insistiu. Mas me
mantive firme e rejeitei a oferta de um seu canivete bonito, lâmina inoxidável,
ponta fina, cabo de chifre, corte afiado. Objeto de sua alta estima.
E ele me perguntou um tanto
espantado, daquele jeito engraçado como costumava falar, quando houvesse
possibilidade de algo dar errado, sempre introduzindo sua frase com a expressão
que ainda hoje ouço no silêncio da minha memória:
- Deus tal não permita, e se
você quiser chupar uma laranja na rua?
- Se não estiver descascada,
eu não vou chupar, pai.
Um pouco decepcionado,
guardou o canivete, que talvez para ele representasse um elo físico entre nós
dois, na longa distância a se abrir entre Bom Jesus e Niterói. Não tive, então,
a sensibilidade para perceber isto. Só muitos anos depois é que este fato, até
hoje martelando na minha memória, produziu este sentido, este significado
escondido: a quebra da ligação masculina entre pai e filho.
Me libertei do canivete,
para não parecer um moço da roça a chegar na cidade grande – Niterói era, por
essa época, a capital do estado. Bastariam, para que meus colegas de faculdade
me identificassem, um certo jeito tímido e o sotaque, cujo erre amineirado não
tinha essa aspiração do daqui, que mais parece a respiração ofegante de uma
crise de asma, como posteriormente fui saber pelo olhar crítico dos goianos,
para quem dei um curso nos idos de 80.
E nunca mais tive um
canivete. E ele nunca me fez falta, como a bengala ou o relógio de bolso.
Meu filho, tenho a
impressão, nem sabe o que é isto. Mas o meu primo Zé Fábio, apenas três meses
mais velho do que eu, ainda carrega o seu, no bolso da bermuda.
Imagem em cutelariabianchi.com.br. |
Nas aldeias de Trás-os-Montes, onde nasci e onde voltava nas férias grandes, os homens e os rapazes também tinham esse canivete, que servia para tudo...
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