Foi só pegar num velho
cartão de visita, guardado de muitos amarelos, para voltar de imediato no
tempo. É o cartão do doutor Lamartine Costa, cirurgião dentista de Corumbá. É
tão antigo, que o número do telefone tem apenas quatro dígitos 2674. Os mais
novos vão achar que é da época do tacape e da flecha, mas faz tão-somente uns
poucos instantes. É só a memória funcionar!
Jane tinha-se disposto a
casar comigo, por uma deferência toda especial da sua beleza mulata, em 20 de
dezembro de 1975. Sacramentado o acordo em cartório e vencida a primeira
tentativa frustrada de lua de mel em Teresópolis e na posse de um mês de férias
no janeiro seguinte, resolvemos mudar os planos iniciais e armamos uma longa
viagem pelo chamado Cone Sul da nossa América: Bolívia, Peru, Chile e
Argentina. Acompanhavam-nos nesta nova lua de mel, de mochila às costas, os
amigos e padrinhos Rogério Barbosa, Eduardo Campos e sua então namorada, cujo
nome não citarei, mas que era uma loura tão bela, quanto complicada.
Os planos foram traçados no
mapa, apenas com o dia da partida e o da chegada.
Saímos do Rio, a bordo do
vagão de bagagem do antigo Trem de Prata, até a Estação da Luz em São Paulo,
porque não havia mais passagens nas demais classes. De lá, tomamos o comboio a
nos levar a Corumbá. O projeto era, de lá, pegar o famoso Trem da Morte, que
ligava Corumbá a Santa Cruz de la Sierra, já nos contrafortes dos Andes.
Chegamos ao fim da tarde do dia seguinte. Na outra manhã, Jane começou a sentir
dor em um dos dentes. Naquela situação, resolvemos procurar auxílio de um
profissional, e nos foi indicado o doutor Lamartine.
Em chegando ao consultório,
explicamos a ele o que estava ocorrendo e nossa situação passageira pela
cidade. Doutor Lamartine dispensou duas mocinhas que aguardavam seus serviços,
dizendo a elas que aquilo era uma emergência, caso de dor, remarcou suas
consultas e foi atender a Jane.
Era problema de canal! E
canal quando apresenta problema não dá para esperar. Prontamente ele perfurou o
dente, extraiu a raiz doente, fez o curativo e as recomendações necessárias.
Poderíamos continuar a viagem, sem, contudo, pegar o Trem da Morte, e, ao
chegar a Niterói, Jane deveria procurar seu dentista, explicar o que houve e
providenciar o tratamento definitivo, já que o curativo que fizera não tinha
tal caráter. Aconselhou-nos também a, no alto dos Andes, usar pastilhas de
Coramina, para prevenir palpitação, comer e beber moderadamente e evitar fazer
sexo nos primeiros dias, a fim de que Jane não voltasse viúva das grimpas da América
do Sul. Se você, leitor, está lendo isto, é sinal de que estou vivo até hoje.
Ao final da consulta,
perguntamos o valor do tratamento, e o doutor Lamartine se recusou a receber.
Disse que iríamos precisar do dinheiro para a viagem, que não aceitaria
pagamento naquela hora. Quando chegássemos de volta a casa, poderíamos fazer a
transferência para sua conta bancária. Ainda insistimos em pagar, mas ele,
definitivamente, não aceitou.
Ficamos emocionados com seu
gesto. Então pedi o número de sua conta. Foi o momento em que ele me passou o seu
cartão de visita, onde anotei com caneta esferográfica: Banco do Brasil, conta
número tal.
Agradecemos grandemente ao
doutor Lamartine, que talvez fosse menos de dez anos mais velho que nós, e nos
dirigimos até os Correios, onde adquirimos um telegrama pré-pago, no qual pedi
ao primo Zé Fábio, funcionário do Banco do Brasil com quem deixara alguns
cheques assinados para emergências, que transferisse a quantia para o dentista.
Anos depois, tive uma colega
no curso de mestrado na UFF, também de Corumbá, a quem contei toda a história.
Para minha surpresa, ela me disse que o doutor Lamartine era velho amigo de sua
família. Aproveitei uma de suas idas à terra natal para enviar minhas saudações
a ele.
Agora o velho cartão de
visita amarelado reaviva todas essas lembranças, calcadas numa emoção que só as
grandes pessoas podem proporcionar.
Nunca mais tivemos notícias
do doutor Lamartine Costa, cirurgião dentista de Corumbá.
Espero que ele continue do
mesmo jeito que era, talvez apenas com alguns cabelos brancos.
Dentista, mestre Vitalino (em conradoleiloeiro.com.br). |
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