24 de fevereiro de 2017

O VERBETE NÃO FOI ENCONTRADO


Dia desses, ao parar o carro numa vaga demarcada no estacionamento do shopping, soltei uma palavra muito usada em minha terrinha natal que não consta de nenhum dicionário. A vaga não era paralela às demais, mas em um ângulo diferente, oblíquo, por estar entre duas colunas. Então a Jane achou estranha a posição em que estacionara o veículo e me perguntou se estava correta. Eu disse que sim e acrescentei:
- A vaga é de vangüê! (Usei o banido e injustiçado trema, para que o leitor saiba exatamente a pronúncia do vocábulo.)
Perguntei a ela, então, se em Miracema, sua terra, também se usava isso.
É preciso informar aqui ao distinto leitor que Miracema e Bom Jesus do Itabapoana distam cerca de cem quilômetros entre si, o que pode determinar usos particulares de nossa mesma língua. Mas não era o caso. Lá também se usa tal palavra.
E veio, em seguida, pela força da memória que me resta, o seu sinônimo, também não dicionarizado: revesguete (com /e/ fechado em todas as sílabas e também com a pronúncia do /u/).
Veja, caro leitor, que para enviesado, quer dizer, de viés, usamos com frequência vanguê e revesguete. Desta forma, um olhar de soslaio é um olhar de vanguê ou de revesguete. Sair de fininho de uma situação embaraçosa também significa, por metáfora, sair de revesguete ou de vanguê. A bola que se chuta e sai pela tangente, não indo na direção pretendida pelo jogador, é uma bola de vanguê ou de revesguete. A peça mal encaixada num conjunto é porque entra de revesguete ou de vanguê.
Aí fico a me perguntar por que os dicionários, que sempre vivo consultando para encontrar esse tipo de registro, numa busca pela validação da linguagem que falamos, nunca deram muita confiança para nosso jeitão caipira de usar a bela língua de Camões, Vieira, Drummond, Bandeira, Torga, Leminski, Caetano, Chico, Eça, Machado e Abrunhosa.
E os exemplos não ficam só nesses.
O leitor haverá de saber, por acaso e sorte, o que é caracaxento? Ou calibrina? Camulaia? Briguelo? Cachimbau? Funicado? Miserento? Balango e balangar? Bitelo? Gibaita? Escabufado? Gafurinha? Esgulepar e esgulepado? Puaia? Istrudia? Mironga? Remandiar? Maxambomba? Marom? Preca? Cabrunco? Baleba? Lambreta? Pois essas são algumas das palavras que usamos com frequência para nomear, qualificar e representar as mais diversas coisas, qualidades e situações do dia a dia.
Alguns poucos desses vocábulos até aparecem em um ou outro dicionário; às vezes com a acepção diferente da que lhe é atribuída, como marom, por exemplo, que para nós é a saborosíssima cocada assada. Caracaxento é áspero. Já calibrina é sinônimo de aguardente, assim como camulaia. Briguelo nomeia o boneco do teatro de marionetes. Cachimbau é a outra denominação do peixe conhecido como cascudo. Funicado, corruptela de fornicado, significa “em maus lençóis”; talvez uma forma branda a evitar o uso do termo fodido. Miserento é miserável, no sentido moral da acepção e não no econômico. Balango e balangar são as formas usadas em lugar de balanço e balançar. Bitelo e gibaita significam muito grande, não apenas grande. Escabufado é mal-arranjado, desajeitado. Gafurinha nomeia o cabelo muito embaraçado, de difícil penetração de pente. Istrudia equivale a “em outro dia atrás” e deve ser corruptela da forma arcaica estoutro dia. Mironga nomeia uma espécie de pudim de pão, embora seja um pouco diferente deste. Remandiar também é forma paralela de remanchear, ou remanchar, com o mesmo sentido. Maxambomba é o nome que se dá ao carrossel de parque de diversões equipado com cadeirinhas. Preca e cabrunco são formas de xingamento, empregadas sobretudo diante de situação adversa ou de difícil transposição, e revelam profunda contrariedade do usuário. Baleba é a prosaica bola de gude. Lambreta é/era o nome que damos/dávamos para sandália de dedos. 
puaia merece um parágrafo à parte. O termo começou a ser usado em expressões como dar puaia ou comer puaia, lá por volta dos anos sessenta do século passado. Ele se presta a identificar situações em que o falante, por meio de palavras de falso elogio, pretende conseguir algo favorável do ouvinte. Nesta situação, ele dá puaia no outro. Se o ouvinte, sem perceber a intenção do falante, acredita naquelas palavras, ele come a puaia. Há alguns conhecidos vaidosos na comunidade local, muito sensíveis a aceitar esses falsos elogios: são os comedores de puaia.
Bom Jesus do Itabapoana, por essa expressão, é conhecida como a cidade da puaia. Houve um cidadão, aliás, com certos parafusos frouxos no juízo, que dizia que na cidade só o sino da igreja não comia puaia. Assim mesmo por estar com a boca para baixo.
Qualquer dia, para suprir a lacuna, ainda faço um glossário completo das palavras e expressões usuais na nossa terra. Só de birra, de pirraça!

Cabrunco!

10 comentários:

  1. Faça o tal glossário... Não entendi patavina!
    Gafurinha... nós dizemos "gafurina"... e é o mais parecido de todas essas estranhas palavras... da tal língua de Camões!!!

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    1. Gafurinha deve ser, então, variação. Essa língua é mais rica do que pensamos, Daisy! Abraços.

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  2. Perfeito; algumas, com certeza, são locais mas, um bom número delas, tinha conhecimento lá na Bahia. Aguardarei o glossário.

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    1. Na verdade, Paulo, descobri também, quando preparava a dissertação de mestrado, que várias dessas palavras, embora não dicionarizadas, são encontradas no Nordeste, como vi em um dos livros de Câmara Cascudo, de cujo título me esqueci.

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    2. O QUE É VEGUE PORQUE EU ESTOU FAZENDO UMA APOSTILA DE PORTUGUES E TA DIZENDO ASSIM SEGUNDO O NARRADOR DO TEXTO A PALAVRA VANGUE

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    3. Olá, Singler! Está explicado no sexto parágrafo o que é "vanguê": enviesado, torto, de viés. Um abraço.

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  3. FALA SAINT CLAIR MELO SABIA QUE MEU NOME É GIULIA DE MELO AQUINO

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    1. Somos quase parentes, Giulia. Por um L apenas. Obrigado pela leitura.

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    1. Que atividade, leitor? Não foi proposta nenhuma. Este não é um texto escolar. É apenas uma crônica sobre a língua falada na minha terrinha.

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