Dia desses, ao parar o carro
numa vaga demarcada no estacionamento do shopping, soltei uma palavra muito
usada em minha terrinha natal que não consta de nenhum dicionário. A vaga não
era paralela às demais, mas em um ângulo diferente, oblíquo, por estar entre
duas colunas. Então a Jane achou estranha a posição em que estacionara o
veículo e me perguntou se estava correta. Eu disse que sim e acrescentei:
- A vaga é de vangüê! (Usei
o banido e injustiçado trema, para que o leitor saiba exatamente a pronúncia do
vocábulo.)
Perguntei a ela, então, se
em Miracema, sua terra, também se usava isso.
É preciso informar aqui ao
distinto leitor que Miracema e Bom Jesus do Itabapoana distam cerca de cem
quilômetros entre si, o que pode determinar usos particulares de nossa mesma
língua. Mas não era o caso. Lá também se usa tal palavra.
E veio, em seguida, pela
força da memória que me resta, o seu sinônimo, também não dicionarizado: revesguete (com /e/ fechado em todas as sílabas e também com a pronúncia do /u/).
Veja, caro leitor, que para enviesado, quer dizer, de viés, usamos com frequência vanguê e revesguete. Desta forma, um olhar de soslaio é um olhar de vanguê
ou de revesguete. Sair de fininho de uma situação embaraçosa também significa,
por metáfora, sair de revesguete ou de vanguê. A bola que se chuta e sai pela
tangente, não indo na direção pretendida pelo jogador, é uma bola de vanguê ou
de revesguete. A peça mal encaixada num conjunto é porque entra de revesguete
ou de vanguê.
Aí fico a me perguntar por
que os dicionários, que sempre vivo consultando para encontrar esse tipo de
registro, numa busca pela validação da linguagem que falamos, nunca deram muita
confiança para nosso jeitão caipira de usar a bela língua de Camões, Vieira,
Drummond, Bandeira, Torga, Leminski, Caetano, Chico, Eça, Machado e Abrunhosa.
E os exemplos não ficam só
nesses.
O leitor haverá de saber,
por acaso e sorte, o que é caracaxento? Ou calibrina? Camulaia? Briguelo? Cachimbau?
Funicado? Miserento? Balango e balangar? Bitelo? Gibaita? Escabufado?
Gafurinha? Esgulepar e esgulepado? Puaia? Istrudia? Mironga? Remandiar? Maxambomba?
Marom? Preca? Cabrunco? Baleba? Lambreta? Pois essas são algumas das palavras que usamos com
frequência para nomear, qualificar e representar as mais diversas coisas,
qualidades e situações do dia a dia.
Alguns poucos desses vocábulos
até aparecem em um ou outro dicionário; às vezes com a acepção diferente da que
lhe é atribuída, como marom, por
exemplo, que para nós é a saborosíssima cocada assada. Caracaxento é áspero. Já calibrina
é sinônimo de aguardente, assim como
camulaia. Briguelo nomeia o boneco do teatro de marionetes. Cachimbau é a outra denominação do
peixe conhecido como cascudo. Funicado, corruptela de fornicado,
significa “em maus lençóis”; talvez uma forma branda a evitar o uso do termo fodido. Miserento é miserável,
no sentido moral da acepção e não no econômico. Balango e balangar são
as formas usadas em lugar de balanço
e balançar. Bitelo e gibaita significam
muito grande, não apenas grande. Escabufado
é mal-arranjado, desajeitado. Gafurinha nomeia o cabelo muito embaraçado, de difícil penetração
de pente. Istrudia equivale a “em
outro dia atrás” e deve ser corruptela da forma arcaica estoutro dia. Mironga nomeia uma espécie de pudim de
pão, embora seja um pouco diferente deste. Remandiar
também é forma paralela de remanchear,
ou remanchar, com o mesmo sentido. Maxambomba é o nome que se dá ao
carrossel de parque de diversões equipado com cadeirinhas. Preca e cabrunco são
formas de xingamento, empregadas sobretudo diante de situação adversa ou de
difícil transposição, e revelam profunda contrariedade do usuário. Baleba é a prosaica bola de gude. Lambreta é/era o nome que damos/dávamos para sandália de dedos.
Já puaia merece um parágrafo à parte. O termo começou a ser usado em
expressões como dar puaia ou comer puaia, lá por volta dos anos
sessenta do século passado. Ele se presta a identificar situações em que o
falante, por meio de palavras de falso elogio, pretende conseguir algo favorável
do ouvinte. Nesta situação, ele dá puaia no outro. Se o ouvinte, sem perceber a
intenção do falante, acredita naquelas palavras, ele come a puaia. Há alguns
conhecidos vaidosos na comunidade local, muito sensíveis a aceitar esses falsos
elogios: são os comedores de puaia.
Bom Jesus do Itabapoana, por
essa expressão, é conhecida como a cidade da puaia. Houve um cidadão, aliás,
com certos parafusos frouxos no juízo, que dizia que na cidade só o sino da
igreja não comia puaia. Assim mesmo por estar com a boca para baixo.
Qualquer dia, para suprir a
lacuna, ainda faço um glossário completo das palavras e expressões usuais na
nossa terra. Só de birra, de pirraça!
Cabrunco!
Faça o tal glossário... Não entendi patavina!
ResponderExcluirGafurinha... nós dizemos "gafurina"... e é o mais parecido de todas essas estranhas palavras... da tal língua de Camões!!!
Gafurinha deve ser, então, variação. Essa língua é mais rica do que pensamos, Daisy! Abraços.
ExcluirPerfeito; algumas, com certeza, são locais mas, um bom número delas, tinha conhecimento lá na Bahia. Aguardarei o glossário.
ResponderExcluirNa verdade, Paulo, descobri também, quando preparava a dissertação de mestrado, que várias dessas palavras, embora não dicionarizadas, são encontradas no Nordeste, como vi em um dos livros de Câmara Cascudo, de cujo título me esqueci.
ExcluirO QUE É VEGUE PORQUE EU ESTOU FAZENDO UMA APOSTILA DE PORTUGUES E TA DIZENDO ASSIM SEGUNDO O NARRADOR DO TEXTO A PALAVRA VANGUE
ExcluirOlá, Singler! Está explicado no sexto parágrafo o que é "vanguê": enviesado, torto, de viés. Um abraço.
ExcluirFALA SAINT CLAIR MELO SABIA QUE MEU NOME É GIULIA DE MELO AQUINO
ResponderExcluirSomos quase parentes, Giulia. Por um L apenas. Obrigado pela leitura.
ExcluirCadê a atividade 😠
ResponderExcluirQue atividade, leitor? Não foi proposta nenhuma. Este não é um texto escolar. É apenas uma crônica sobre a língua falada na minha terrinha.
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