(Conto baseado em história contada por minha mãe.)
A
cachorrada latia no alvoroço do clarão da noite enluarada. Lá fora corria um
vento fino e assobiador em cabeça de estaca de cerca, em parecença de noite
excomunguenta de bicho dos eitos dos infernos. Era de não botar as canelas
além do batente da porta, muito menos o nariz.
Toniquinho
Pinto, veterano conhecedor de saci e demais aparições noturnas, asseverava
grandes pompas para daí umas duas horas, lá pela volta da meia-noite, conforme
é do costume dessas manifestações. “Sim, senhor, hoje é festança das grandes em
terreirão de café, que dirá em descampado de guiné alto ou curvas de figueiras
tortas. Tá chegano a época da desova do saci”. Que saci botasse ovo era
postulado que não precisava de prova, tal e qual na matemática, ciência de que
também costumava afiançar conhecimentos, além de alguns ditirambozinhos de
caxambu em noites juninas, “coisa essa que faço num romper de ideia, num
faiscar de imaginação”.
Aboletado
no alto dessas três pilastras de sua mais alta cultura, Toniquinho nem atendeu a
ponderação do sobrinho, descrente de assombrações, ao afirmar que “enquanto a
fêmea do saci cuida do ninho, o macho vira peste na defesa dos ovos”. E num e noutro
parecer mais científico, tratou de esclarecer a todos a genealogia desse ente,
segundo ele, filho mal acabado do bicho ruim, que escapou dos quintos dos
infernos, desgostoso da forma que lhe foi dada pelo seu criador, “com letra
minúscula”, frisava, e resolvido de bagunçar a raça humana em gozações e medos,
que espalhava no granel e no varejo. Para ele, nessas ocasiões, desafiar a
pestilência do macho era a mesma coisa que padecer de umas boas chibatadas em
pelourinho do tempo dos escravos.
- O de mais interessante nessa raça
é que o ovo, do tamanho do ovo de avestruz, tem duas gemas: uma vermelha e
outra roxa. A clara é leitosa que nem o próprio leite. E doce que nem mel.
Conhecimentos assim tão
pormenorizados e detalhados não são de se desprezar, motivo mais do que
suficiente para fazer o sobrinho Honorino Pinto meter os beiços de revesguete,
num risozinho zombeteiro:
- Mas, tio, como é que o senhor sabe
dessas coisas todas? Por acaso, o senhor já comeu ovo de saci?
O velho olhou para lado e outro,
telhado e assoalho, esquadrinhando presenças invisíveis naquele fundo de noite
tenebricosa. Então o Honorino não tinha tomado conhecimento pela boca dos
parentes? Se havia coisa que Toniquinho fazia questão de ostentar, era a
história da gemada de ovo de saci que tomou, quando no romper dos dezoito anos.
- Vinha eu em marcha picada, na
pressa de chegar em casa, quando o cavalo, o Deixa-vim, lembra dele?,
passarinhou nas patas traseiras. Isso era uma noite de treze de agosto. Foi em
1943. Eu tinha acabado de sair de um baile em casa de Castorino da Zilda, um
mineiro claro e gordo, pai de quatro moças bonitas, que tava sempre animano a
Vala com uma dança, na esperteza de escolher genro. O Deixa-vim, mais do que
acostumado a viajar de noite, o bicho enxerga dez veiz mais do que gente; bem,
o Deixa-vim, rédea solta, estacou na passagem do sítio do Nilo, ali onde hoje
tem o curral. Naquela época, era tudo plantado de milho. Golpeei o animal na pá
e senti a roseta encontrar resistência de couro retesado. Tornei a chuchar a
espora com mais força, na mesma hora em que dei com o rei na prancha do pescoço
dele, dano um galeio no corpo, em modo de quem já tá de saída. Nada! O cavalo
tinha arrumado uma empacação que eu nunca tinha visto igual. Como a noite
tivesse clara, corri os olhos em volta, para apurar a situação e ver se achava
a razão daquela atitude. Cobra não era, nem cascavel, nem surucucu, que era o
que mais tinha naquela zona. Talvez uma cotia? Que o quê! Fui, então, seguino
com os olhos no avançado da cabeça do cavalo e deparei, a uns três metros mais
adiante, com um ovo grande, branquinho, branquinho, com a casca alumiano no
luar. Pensei cá comigo: só pode ser ovo de ema. Tá muito grande para ser ovo de
criação de quintal. No que imaginei, apeei do animal, passei a mão naquele
bitelo daquele ovo e meti no embornal. O danado tava quentinho ainda! Casca
dura, foi sem quebrar até em casa. Lá chegano, ainda dei com a nega Anunciata
mexeno no fogão, ferveno água pra tomar banho. Falei com ela: Ô, Anunciata, me
aprepara uma gemada com esse ovão aí! Pela fome que trago do baile do
Castorino, só dá pra deixar um golezinho pr’ocê exprementar.
Honorino, nessas alturas, já se
arrependera de provocar o velho tio. Era quantas vezes alguém tocar na
história, tantas vezes ele repetir com a riqueza de detalhes que só a velhice
nostálgica é capaz de fornecer. Ele mesmo, o Honorino, já tinha ouvido essa
mesma história cerca de umas quinze vezes em seus trinta anos de vida. Gostava
de ouvir o velho contar os casos dos antigamentes, é verdade, mas tinha
absoluta descrença por tudo que dissesse respeito aos desvãos da noite. Para
ele, tudo isso não passava de falta do que fazer da gente antiga, mais
preocupada em se fazer respeitar pela quantidade de medo que conseguisse
infundir nos mais novos. Mas ele, Honorino, letrado em colégio da cidade,
conhecedor de um e outro poste de luz elétrica, sabedor das mitologias dos
gregos e dos romanos, dois povos, esses também, sem nada com que se preocupar,
ele, Honorino, fazia absoluta questão de passar por cima de tudo isso, com
aquela audácia fornecida pela ciência livresca, pela fronte altaneira de quem
tivera tomado contado com as Humanidades. Não era de se impressionar com coisa
pouca, depois que lera sobre o processo de mumificação dos faraós egípcios,
mortos mais que mortos, apesar do corpo ainda conservado.
A luz da lamparina vacilava,
embaciando a vista das pessoas ao redor da conversa. Biscoitinhos de polvilho,
cafezinho quente cheirando no fogão de lenha animavam a roda que se deliciava e
tremia com os causos do tio Toniquinho. Rita era a indagadeira:
- Mas, tio, e aí?
- Minha filha, a Anunciata
esconjurou o tamanho do ovo e disse que nunca tinha visto um tal e qual aquele:
nem de ema, nem de avestruz, nem de cobra. “Ô, Toniquinho, ‘cê vai querê gemada
desse ovo, se ‘cê nem sabe do que qui é?”. Sem discutir meu pedido, mas. com
muito custo, quebrou o cascão do ovo e derramou numa bacia de ágate da China
para bater. Pessoal, o pinote que ela deu quando viu aquelas duas gemas
diferentes foi desconforme. Me gritou, no que corri até o fogão para ver que
bicho que era. Nada! Só um ovo com duas gemas. Falei com ela para tirar a mais
escura, que já devia de ‘tar galada, e fazer a gemada só com a outra. Fez e
bebi. Só fui descobrir que era ovo de saci quando, no outro dia, falei com o
Ditinho Xará. Aí ele me deu tudo que era explicação. Isso que eu falo pr’ocês.
E disse mais o Ditinho que, se eu tomasse da gema roxa, tinha virado saci
também. Desconjuro! Cruz credo!
Mais e mais a cachorrada aumentava a
confusão no terreiro. Toniquinho explicava, nesse momento, estar chegando a
hora e, mais do que nunca, era preciso dizer uns desagravos, chamar uns santos
para proteger a criação e livrar a casa de alguma malvadeza dos encapetados.
- Tio, sabe que eu não acredito em
nada dessas bobagens que o senhor conta? Saci só existe aqui na roça, nesse
cafundó de Judas. Na cidade, onde tem luz elétrica, clareando a noite, como é
que não se ouve falar em saci?
Súbito, um barulho ensurdecedor se
fez ouvir no telhado da casa, como se fossem arrobas e mais arrobas de milho
chovendo de uma grande altura.
- Olha as suas besteiras no que tão
dano, seu Honorino sabidão! Fala mais besteira e essa casa pode ficar sem
cumeeira!
- E eu tou lá acreditando nisso! –
gritou o sobrinho desaforado, já desconfiado do barulho estranho. – Vai ver, o
senhor aprontou um das suas com o campeiro.
O vento zumbiu feio nas lascas de
cerca e varreu o alto da casa, arrancando telhas, papéis velhos lançados ao ar.
Uma profusão de ave Maria cheia de graça o senhor é convosco encheu a mesa de
biscoitos, no medão que tomava conta das mulheres; uns ai meu Deus, ai minha Santa
Barba, meu São Jerome respondiam pelos homens desencorajados.
- Tá veno no que tá dano a sua falta
de respeito, seu desbocado?!
- Isso é só um vendaval, uma tempestade
de vento! Será que vocês não estão vendo isso, meu Deus do céu? – Honorino
tentando convencer os parentes dos faniquitos da natureza.
- Deixa de sê bobo, menino! Olha o
que eu tou te dizeno!
- Quer saber de uma coisa, tio? Se
saci existe mesmo, eu exijo que um entre aqui, que eu afundo o cachimbo goela
adentro e ainda arranco aquele gorro vermelho, de que o senhor fala, mal
costurado da cabeça dele.
- Crendospadre! Virge Nossa Senhora!
O desabusado está desafiano o coisa ruim.
- Para
com essas bobage, Honorino! – A vez de sua mãe, transparente de medo, pedir.
A
porta da casa se abre na violência do vento em rodamoinho que contorna Honorino
e o suspende pela cumeeira destelhada, corpo como folha seca a balançar no ar.
Mais de um se benze e se ajoelha. O velho Toniquinho, vibrando a gurumbumba,
ainda gritou para o sobrinho voador:
- Bem
feito, miserento!
Uns se
agarrando aos outros, outros se abraçando a uns, o velho soberboso de sua
ciência em saci, aparentando calma, começou a mascar uma bolachinha de polvilho
molhada em café. O terror estampado em mais de uma cara familiar.
Enquanto
isso, o terreirão era uma barafunda só: cães latindo; lapadas de chicotes
cortando a noite; assovios mais do que conhecidos, misturados a gargalhadas
debochadas; gritos de gente, mais precisamente de homem sendo açoitado; criação
em cacarejos desesperados e voos destrambelhados. Os gritos de homem a superar
a balbúrdia daquela noite de agosto.
Por
fim, a calma. Silêncio profundo e manso: tempestade que passou.
Pela
porta aberta com o vento, inesperadamente, é lançado aos trambolhões o corpo
inconsciente e lanhado a chicote de Honorino Pinto, com toda a sua ciência e
sapiência.
Ao
fundo, junto do chiqueiro, gargalhadas e assovios ainda mais debochados.
Saci, em desenho a nanquim de Monteiro Lobato (em fantasia.wikia.com).
Credo!!! Eu acredito em saci!...
ResponderExcluirEstou me deleitando com suas histórias. Sua maneira de narrar me leva para um terreiro ao pé do fogo de uma fogueira, ouvindo um Toniquinho desses a desfiar assombrações e sustos.
ResponderExcluirObrigado pela leitura e pelo comentário Siovani! Arraste seu banco e veja outras que aqui estão.
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