(Conto baseado em fato real, ocorrido na década de 50 do séc. XX, em Carabuçu.)
Os princípios da moral batista, parecia,
morgaram como galho de goiabeira o espírito mulherengo e cachaceiro de
Agostinho Mineiro. A conversão tinha sido um milagre aos olhos de todos. Homem
dos seus cinquenta anos, Agostinho nunca fora propriamente um pai de família:
mulher e filhos sofriam por suas arruaças e bandalheiras. Casos os mais
diversos, envolvendo mulheres casadas, forneciam matéria para os disse-me-disse
de beira de cerca, para os fuxicos em que ele entrava sempre de bobo e saía de
macho. Seus filhos adulterinos se espalhavam com pés de capitão-do-mato pela
estrada que ligava o Jacó à vila. Mais essa, mais aquela, não havia tempo,
cairiam nas conversas, nos boas-tardes-dona-fulana, nos podia-me-fazer-o-obséquio-de-um-copinho-d’água.
Marido fora de casa, em passagem de Agostinho, era marido galhado.
Tudo
isso, entretanto, já figurava como coisa do passado. Há seis meses que o
cachaço trocara a cama alheia por uma bíblia. A mudança no comportamento de Agostinho
fora tão radical que, nem de longe, ele permitia uma palavra menos policiada,
uma piada grosseira. Hoje era outro homem, “voltado para as coisas do Senhor
Jesus, meu salvador”. E mais de uma vez pregara o evangelho, ainda não bem
decorado, como é do hábito da gente do interior. Nas suas falas, permeava com
versículos daqui e dali a porqueira de sua antiga vida, modelo suficiente para
derrotar qualquer coração mais insensível aos apelos da fé e da lei de Deus.
Gostava muito de repetir a parábola do filho pródigo, ele, o próprio, para
demonstrar o gozo celeste de sua volta ao rebanho dos eleitos.
Já
não mais a apreensão e a desconfiança eram as companheiras dos moradores
daqueles sítios, agora deitados em paz e descanso quanto à honestidade de suas mulheres.
Se antes ele era o diabo a se esconjurar, de entrada proibida em mais de uma
casa, hoje era o convidado especial para um licorzinho, o bem-vindo para uma
conversa decente.
Obrava
bem o Agostinho. É que, debaixo dessa sua nova fantasia, escondia o mesmo gosto
pelo lençol alheio, aproveitado na confiança adquirida pela repetição
desavergonhada dos textos sagrados.
Bíblia
embaixo do braço, paletó aberto no peito da camisa, a reverência do chapéu, e
lá ia ele, marido ausente, a se meter na cama com a comadre fulana, com a irmã
cicrana. Aquela solidão das lavouras e pastos espevitava a pouca-vergonha das
mais resguardadas, fazia o desvario das mais fogosas, infernizava as frestas e
os murundus das meninas-moças. Todas elas no riscado de Agostinho: essa hoje;
aquela, amanhã; aquela outra, “no mais tardar, sexta-feira que vem, quando o
compadre Noca for levar o milho quebrado na vila, se Deus quiser”. E tirava o
chapéu em sinal de respeito, imundícia só naquela cabeça de cafajeste.
As
mulheres se entregavam mais tranquilas às suas competências sexuais, no parecer
de que os maridos acreditavam mansamente nos propósitos do novo irmão em Jesus. E a bandalheira se
alastrava que nem tiririca. A cada dia, era uma virtude a ir para as cucuias, uma
fidelidade para o caixa-prego, uma virgindade para o cu do conde.
-o-o-o-o-o-o-
Enfurnado
num vão de pedra na curva do Barro Preto, ainda não de todo curado do
desarranjo intestinal que sobreviera à notícia de que sua mãe viúva e suas três
irmãs esperavam filhos de Agostinho Mineiro, João Vitório assentava as armas da
tocaia vingadora: espingarda, garrucha de dois canos, revólver, enxadão, foice
e um facão de mato; uma caixa de cartuchos e uma de bala; ódio e ferocidade;
desatino e desejo de vingança. Essas últimas, armas mortais. Por sua cabeça
avariada, o demônio pintava com cores carregadas as caras risonhas das
criancinhas, seus futuros sobrinhos e irmão, a rir-lhe com deboche, as gengivas
banguelas, as cabeças carecas, da sua inocente crença na conversão daquele fauno
sertanejo: lobisomem a emprenhar vacas e vitelas, as mulheres.
Faria
um acerto de contas com o cachorro safado. Era para isso que estava ali, os
intestinos a se remoerem de dor. Era para lavar a honra da família; ele, o
arrimo, o único homem. E pensar que sua mãe, viúva ainda nova, pudesse ter
caído na conversa daquele salafrário. No primeiro encontro na igreja, aquele
jeito visguento do canalha a se curvar respeitoso, tudo fingimento, para
cumprimentar a família:
-
Dona Carmita, muito boa tarde. Como tem passado a irmã em Cristo Jesus ? E as
meninas como vão?
Seria
possível uma pessoa fingir aparência de evangélico, bíblia embaixo do braço,
cultos aqui e ali, pregações e outras coisas, só para poder se aproximar
daquelas mulheres? Seria possível, meu Deus, que a graça tinha escapado do
coração de suas irmãs e mãe, tão virtuosas elas eram? E logo as quatro de uma
vez só?!
-
Pelo amor de Deus, é possível um trem desses?
Mas
ali estava ele, feito bicho na toca, esperando a vítima passar para a vila, em
demanda das compras da semana, caminho de ida e volta, único caminho: a curva
do Barro Preto, meia distância entre a vila e o Jacó. Aninha-se o desesperado
entre duas imensas pedras redondas e negras, uma vigia natural para os dois
lados da estrada de chão. Ingazeira solitária projetando sombra de lua cheia na
furna em que se escondia.
Segundo
seus cálculos, o porco imundo viria pela esquerda, naturalmente saboreando em
pensamento as carnes da família Vitório: Maria Hortência, Adelaide, Creusa e
Carmita, sua mãe. Logo sua mãe, merda?!
-
Mas esse canalha miserento vai ver com quantos paus se faz uma cangalha. Esse
filho de uma égua vai provar o chumbo da minha espingarda, a espingarda do meu
velho, que Deus o tenha!
Ele,
as armas, a tocaia: elementos a se fundirem pelo ódio, pela sede de vingança.
As duas pedras, a ingazeira, ele ali como um lagarto, alojado na loca estreita.
A estrada manhosa e mole no andar descansado dos animais de sela; um ou outro
tropel mais apressado de cavalo novo, em marcha, ganhando chão, deixando para
trás as casas de sua beira. Certamente essa estrada iria trazer até a mira de
sua quarenta-e-quatro, até ao alcance de sua foice, o peito, o pescoço, o saco
do patife.
Ele,
a tocaia, as armas. Espingarda azeitada, limpa, cartuchos novos; os dois cães
ganindo sobre as espoletas impacientes; coronha bordada. Garrucha de dois
canos, carga dupla, perdigotos de aço estragando quando entram e saem; cabo de
madeira lascado num tiro anterior. Foice, facão de mato e enxadão, lâminas
reluzentes na lua cheia; fios afiados de fender a carne, rasgá-la.
As
armas, a tocaia, ele. Olhos inflamados, campos dos fatos de ontem: a morte do
pai; o choro desesperado da mãe; irmãs pelos cantos da casa, desatinadas; ele
segurando o coração com o punho na garganta, olho no caixão, o braço do tio
sobre o ombro. Coisas passadas nas lágrimas e nos suores do depois, da
responsabilidade da casa, da preocupação com as irmãs solteiras, pasto aberto a
cavalos soltos ao largo.
-o-o-o-o-o-o-
O
caminho que desce o morro conduz, em direção à curva do Barro Preto, dois
cavaleiros; um, o alvo; o outro, a testemunha. Tatão Camargo, roseta no vazio
da mula, cigarro no canto da boca, mantém a conversa animada com o compadre.
Agora, convertido ao evangelho, Agostinho só então podia desfrutar da amizade do
padrinho de seu primeiro filho, homem severo nos negócios e na moral.
O
primeiro tiro do revólver derrubou da besta baia o reprodutor desvairado, o
ombro esquerdo estraçalhado. Tatão estacou a ruana e saltou para socorrer o
companheiro. Transfigurado pela dor, Agostinho se levantou, apoiado no amigo,
costas a se voltarem para o ponto de onde partiu o disparo. Um novo varou-lhe
os intestinos, dobrando-o sobre a barriga. Tatão, na iminência de receber um
balaço, escondeu-se atrás da montaria, deixando a descoberto as canelas e uma
parte das coxas. Não levou nem um minuto para que o carrasco, fogo nos olhos, o
diabo no corpo, se apresentasse em fúria para completar o serviço. Tatão ainda
tentou inutilmente conter aquela fúria insana:
-
Que é isso, João? Ficou maluco, perdeu o juízo?
-
Cala a boca, Tatão, senão sobra pr’ocê também!
-o-o-o-o-o-o-
O
que sobrou de Agostinho testemunhava a carnificina do Barro Preto: seis tiros
de revólver, dois de espingarda, dois de garrucha esburacadeira, dezessete
foiçadas, os colhões espalhados a facão, a cabeça afundada a olho de enxadão e
merda, muita merda em volta das partes esparramadas na estrada. João Vitório
lavou os intestinos estragados no sangue de Agostinho.
Três
dias depois, o justiceiro foi encontrado morto, sentado junto de um angico, o
braço a proteger-lhe a cabeça. Um tirambaço de garrucha arrebentara-lhe os
miolos. Dera por encerrada a missão da sua vida.
Lua minguante na Bicuda, com intereferência de árvores (foto do autor). |
Que história! que tocaia! Que texto fluido: que bela foto. Parabéns, Saint-Clair. Grande abraço.
ResponderExcluirObrigado, Elias! Abraços.
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