Que se saiba, mula sem cabeça, saci e outros bichos
da escuridão não são de dar as caras fora do horário normal. É dia e hora
certa! Por uma dessas é que você, dificilmente, encontra um trem ruim num
domingo à tardinha. Agora, bota uma figueira, um ermo, uma noite escura, uma
sexta-feira, e não precisará de mais nada para, de repente, estar tocando
pernas para que te quero numa descida qualquer, numa estrada inocente. Quer um
molhozinho melhor pra fermentar ainda mais uma assombração? Cemitério...
Todas essas coisas referentes ao outro mundo são
mais do que conhecidas da gente de Liberdade, vilazinha de seus quase três mil
tementes a Deus e ao Diabo: principalmente ao Diabo. Vamos, então, ao local e à
hora de nossa história.
Como toda Semana Santa que se preze, esta também é
de uma chuva só, daquelas bem fininhas, trazendo consigo um friozinho danado de
bom para se tomar uma pinga, para se jogar uma partida de sinuca no bar do
Tônio Pinto, enquanto rola daqui e dali uma ou outra conversa de caçada, de
pescaria, ou coisa que o valha.
Zé Carola, carpinteiro de mão cheia, pescador
emérito, antigo homem da ronda noturna, bate uma partidazinha à brinca com o Zé
Caiana. Sentados em bancos e cadeiras, o Pedro Moranga, já com a moringa
cheia, como de hábito, e mais alguns sapos de jogo de sinuca. Lá pela volta da
meia-noite, Tônio Pinto e Zé Carola desafiam a coragem do Pedro, propondo-lhe
uma ida até o cemitério a troco de uma talagada de cachaça. Se, por acaso,
trouxer uma coroa, leva também algum dinheiro.
- Taí, Pedro, você tem vinte mil réis se trouxer
uma coroa.
Se por uma cachaça a empreitada já vale a pena, por
vinte mangos, nem que volte com um bicho nos calcanhares, ele vai até o morro
pegar qualquer trem. Além disso, não é o Pedro homem de estar se borrocando
por qualquer sombrinha mais esquisita em noite escura. Está mais que acostumado
a percorrer os caminhos que ligam a vila às zonas de plantação, na casa mais
avançada da noite. Ali dentro da Rua, como chamavam a vila, com luz
elétrica!... Ah, eu quero ver se me aparece algum estropício!
Assim pensando, parte na direção do cemitério com
aquele passo bêbado de gente tocando porco em estrada larga.
Zé Carola, já de caso pensado, pega a lona verde-escuro
que serve para cobrir a mesa de sinuca e, atalhando por outra rua, a do campo
de futebol, sai nos cascos a fim de lá chegar antes do pobre Pedro Moranga. No
meio do caminho, encontra o Ailton da Água, já descendo a rua do cemitério.
Conta-lhe, rapidamente, o plano e pede sua ajuda. Lá vão os dois homens armar a
cena.
Entram no cemitério e estendem, por todo o vão do
portão principal, a lona. Ficam alguns minutos aguardando a chegada do
corajoso.
Lá vem o infeliz, cambaleando, subindo, passo incerto.
Zé Carola e Ailton começam, então, a produzir uma série de ruídos propícios
para essas ocasiões: choro de neném, gemidos, choramingações, gargalhadas
arrevesadas, palavras ininteligíveis. Pedro, um tanto embotado pelo álcool,
força o grande portão de madeira, na tentativa de entrar no campo santo. Tem
vinte mil réis em jogo e ele não vai desistir assim tão fácil.
A nossa vontade, porém, não é tão forte quanto o
nosso medo. E é só perceber melhor o estranho da cena, para que Pedro não tenha
outra saída a não ser despingolar-se morro abaixo, amassando barro, para se ver
livre daquele bicho. Ato contínuo, os dois brincalhões, a lona segura com as
mãos, partem atrás do apavorado, a quem atormentam com toda aquela sonoplastia
maluca.
Bêbado, molhado e já sem forças, Pedro Moranga,
cada vez mais desesperado, cai numa valeta por onde corre a chuva. Qual sombra
diabólica, trem do inferno, coisa do capeta, a lona lhe é lançada em cima com
uivos e gargalhadas soturnas. O infeliz, antes de desmaiar, só tem tempo de
dizer:
- Pode comê, sombração, que eu já tou morto!
Imagem em gartic.com.br. |
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