(Para Eduardo Campos e Rogério Barbosa, amigos.)
Já disse por aí – ou
alhures, para enobrecer o texto – que devo ter alma mineira, ainda que me
considere um animal sem alma. A não ser que se entenda alma como alguma coisa
interior que nos individualize, nos torne particulares no meio da multidão: esse
jeito próprio de ver o mundo e nele se inserir de forma única.
Pois muito bem! Esta minha alma
mineira, sobretudo barroca, chegada a um queijo e a uma pinga de alambique, foi
definitivamente estabelecida em meu ser na primeira vez que vi Ouro Preto. E o
encantamento pelo colonial, pelo barroco, consolidou-se com a argamassa dos
prazeres gustativos que as terras das Gerais têm a capacidade de despertar em
qualquer ser humano que esteja aberto a novas experiências.
E, como toda primeira vez, a
minha também foi inesquecível, marcada por momentos que permanecem ainda hoje
na minha memória afetiva.
Era a época do então famoso
Festival de Inverno de Ouro Preto, um acontecimento organizado pelos alunos da
Universidade Federal de Ouro Preto, como um contraponto de liberdade, naquilo
que era possível à época, ao regime militar. Ele já acontecia há uns três ou
quatro anos, quando os amigos Eduardo Campos e Rogério Barbosa propuseram a
viagem, em julho de 1974.
Em um bar da Miguel de
Frias, encostados ao balcão e alimentados por cervejas, planejamos a viagem,
enquanto a capanga do Duda, com todos os seus documentos, era roubada do seu
Fusca Acidentes do Parto, estacionado
bem na frente do estabelecimento. Por essa época, não tínhamos ainda o hábito
de trancar tudo, com medo de ladrões. Talvez tenha começado aí com este
episódio a via crucis, que só vem
agravando, por que passamos atualmente.
Tivemos – Rogério e eu – de
vencer a contrariedade do Eduardo, para que a viagem não se frustrasse. Na
sexta-feira seguinte, à tardinha, saímos de Niterói. A Jane ia conosco. Ainda
éramos apenas namorados. E, dos quatro, apenas eu não conhecia a cidade.
Como era nosso hábito então,
ficamos acampados um pouco antes da entrada da cidade. Chegamos ao camping,
armamos nossas barracas, tomamos o banho e partimos para a zona urbana. Os
amigos e a Jane prepararam o encontro entre mim e a cidade: a partir de
determinado ponto, eu deveria fechar os olhos e só abri-los assim que fosse
autorizado. Rodamos alguns quilômetros – não muitos –, até que descemos do Acidentes do Parto. De olhos fechados,
saí do carro guiado pela Jane e sob o comando dos três. Assim que fiquei sobre
uma calçada, tive a permissão de ver. E o que vi foi de uma beleza estonteante.
Devia ser lá pelas oito ou nove
horas da noite. Em pleno quadrilátero da Praça Tiradentes, bem na esquina com a
Rua Cláudio Manuel, lentamente fui abrindo os olhos e o espetáculo urbano que
se descortinou aos poucos foi inesquecível: a cidade estava tomada por uma névoa
baixa, que encobria os telhados dos casarões, e se inundava com a luz dos
lampiões. Aos poucos, fui girando o corpo, conduzindo o olhar pela praça, até
dar com o Museu da Inconfidência, que ficara às minhas costas. Completara,
assim, o primeiro impacto em trezentos e sessenta graus com a cidade.
Fui tomado de uma emoção
incomum, até então não sentida diante das coisas feitas pelo homem. A cidade
não poderia ter-se preparado de melhor forma, para que o barroco e o colonial
se instalassem entre minhas preferências estéticas.
Entretanto, para não dizer
que tudo fosse perfeito, observamos no centro da praça, junto à estátua de
Tiradentes, um veículo estranho, carrancudo, de cor preta, antena parabólica sobre
sua carroceria blindada, com letras brancas a indicar que não estávamos
liberados para tudo: DOPS, a famigerada polícia política do regime militar, ali
a postos para as ações de praxe.
Passados esses dois sustos,
carro estacionado, ainda muito poucas pessoas nas ruas, saímos para o
conhecimento do que ocorria. Subindo e descendo ladeiras, ladeadas por casarões
preservados, procuramos por gente, por música, por bebida e comida. Alguns
porões abrigavam bares e restaurantes, onde os jovens se reuniam para
confraternizar. Num desses, fomos apresentados a certa iguaria da mais
tradicional cozinha mineira: o bambá de couve. Também conhecido como mambá de
couve, o prato é um tipo de mingau de fubá, acrescido de pedaços de carne de
porco e tiras finas de couve. É um prato de sustança, que acompanhado por vinho
em caneca, desses que hoje não mais temos coragem de beber, esquentava o peito,
o estômago, as canelas e a alma. E deu a energia necessária a que
percorrêssemos outras tantas ladeiras, parássemos em rodas de violão a céu
aberto, confraternizássemos com grupos que passavam, até voltarmos ao camping,
já entrada a madrugada, para a primeira noite de sono sob o manto colonial da
lua de Ouro Preto.
Alberto da Veiga Guignard, Paisagem de Ouro Preto, 1950 (em criticadeartebh.com). |
Narração e descrição que tocam a alma do leitor. Bravo,mestre!
ResponderExcluirObrigado, amigo!
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