Por
volta dos anos 50/60, vez e outra, apareciam forasteiros bem-falantes, comunicativos,
simpatia incomodativa, barba escanhoada, brilhantina perfumada nos cabelos, beiço
superior ornado por um bigode aparado a navalha Solingen e munidos de uma arma
perigosa: o violão.
Chegavam
chegando, sem muitas cerimônias, fazendo-se enturmados, dirigiam-se ao primeiro
botequim mais bem frequentado, pediam um traçado, um rabo-de-galo, uma cerveja
gelada, e puxavam conversa com o mais próximo.
Eram
os tais seresteiros-viajantes. Nos moldes dos também antigos caixeiros-viajantes
que saíam oferecendo suas bugigangas país afora, com suas malas recheadas de
novidades, tais seresteiros iam derramar seus cantos por janelas diversas, na
busca de conquistar corações desavisados de donzelas – ou nem tanto –
sonhadoras.
Um
desses chegou a Carabuçu, quando eu menino, e por lá ficou por certo tempo. Sacava
seu violão na Pracinha do Sabiá, dedilhava seus bemóis e sustenidos e soltava
sua voz tremente – o tal vibrato – em boleros e sambas-canções chorosos.
Mostrou sua arte como compositor, apresentando uma canção de própria lavra, de
que até poucos anos atrás eu sabia a melodia e a letra.
Até
que resolveu soltar seus trinados sob o alpendre de mulher casada, tida por
facilitadora de situações, e acabou levando uns contravapores da pior espécie
do senhor marido da dita mulher, que o fizeram sair de Carabuçu com a cara toda
amarfanhada e o violão estilhaçado em várias partes.
Dele
nunca mais se soube.
Um
outro, pelo mesmo tempo, e nem sei se seria o mesmo, invadiu a praça de Bom
Jesus com as mesmas deletérias intenções.
Na
verdade, quando se diz Bom Jesus, é preciso que se entenda como uma cidade
dupla: uma no Rio de Janeiro – Bom Jesus do Itabapoana – e outra no Espírito
Santo – Bom Jesus do Norte – apenas separadas pelo rio que dá o nome à primeira,
mas unidas pela velha ponte de concreto.
Pois
também aquele tal seresteiro ambulante, de conversa em botequim da guaxa, pediu
informações sobre possíveis vítimas de seu canto de sereia. Indicaram-lhe a
casa do senhor José Cordeiro, exatamente postada logo à saída da ponte, já no
Espírito Santo. Seu Cordeiro morava num sobrado na diagonal da esquina em
relação ao posto de gasolina de sua propriedade. Segundo o cantor de milongas
apurou, seu Cordeiro era possuidor de três belas donzelas solteiras, moças discretas
e de peregrinas virtudes, como assegurava A Voz do Povo, hebdomadário da outra
Bom Jesus, sempre que se referia a qualquer senhora da sociedade local.
Naquela mesma noite, mal a
lua cheia tomou o zênite no céu estrelado de Bom Jesus, o cantador começou a
debulhar canções do repertório nacional. Começou com “oh! lua branca de
fulgores e de encanto / se é verdade que ao amor tu dás abrigo”, (Lua branca), da maestrina Chiquinha
Gonzaga; reforçou com “a lua vem surgindo cor de prata / lá no alto da
montanha verdejante” (Malandrinha),
gravada pelo mago Orlando Silva; e emendou, de enfiada, com “lá no alto a lua
esquiva / está no céu tão pensativa” (Noite
cheia de estrelas), do portentoso tenor Vicente Celestino.
Como nenhuma das donzelas se
dispusesse a abrir a janela e se encantar com sua voz maviosa, o bardo notívago, revoltado com tanta indiferença, adaptou a letra da última canção às circunstâncias do momento e cravou, no meio
da noite tranquila, “só tu dormes, não me escutas / filha-da-puta”, escandindo
bem a última palavra em sílabas cristalinas. Foi o instante exato de receber
pelas platibandas o jorro de mijo de três penicos cheios, lançados por Zé,
Justino e Pedro Cordeiro, as supostas filhas de seu José Cordeiro, já chateados
daquele cantorzinho meia-bomba a incomodar-lhes o sono tranquilo daquela noite
fria de julho.
J. Emilio Rocha, Cantores seresteiros (em arterocha.blogspot.com.br). |
"As supostas filhas"!Hahaha! Carabuçu e Bom Jesus sabiam mesmo preservar suas tradições! Muito bom, mestre!
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