Na
minha vila de Carabuçu, lá pelos fins de 50, princípios de 60 do século
passado, Narck Pontes tinha um serviço de alto-falantes de quatro bocas,
montado sobre o prédio comercial do tio Nalim, na esquina das ruas Coronel
Alfredo Portugal e Coronel Antônio Olímpio de Figueiredo.
O
prédio era – e ainda é – o maior da vila. Tem dois andares. E sobre a cobertura
instalaram-se aquelas quatro bocas metálicas que, duas vezes por dia, faziam a
trilha sonora de nossas vidas simples de gente do interior.
Nos
finais de semana, o proprietário, dublê de locutor, apresentava um programa de
“oferendas musicais”, assim mesmo nomeado. As pessoas escolhiam uma música para
dedicar a alguém. Pagava-se, então, a módica quantia de dois cruzeiros, o preço
de um picolé do Barrosinho ou do tio Tônio, por cada oferenda, e transformava
seus devaneios românticos em acordes musicais.
Enquanto
passeávamos na pracinha, que ficava a duas quadras da esquina do tio Nalim,
ouvíamos prazerosos o som espargido das quatro bocas do sistema de som do Narck
Pontes, que caprichava na locução. Algumas dedicatórias eram praticamente
criptografadas:
-
Alguém oferece a alguém, e esse alguém sabe quem, o samba-canção Meu vício é você, de Adelino Moreira, na
voz inconfundível de Nelson Gonçalves!
E,
sem o chiado comum aos toca-discos de então, o som da música enchia o ar da
vila. Meu amigo José Luiz Padilha, no entanto, que morava numa vasta chácara à
meia distância, sempre dizia que a continuidade das ondas sonoras dependia da
direção do vento. E suas audições eram entrecortadas por instantes de silêncio
e instantes de som. Mais ou menos como Lulu Santos pontua na música Certas coisas.
Certo
sábado de verão, noite cálida, passeando pela Pracinha do Sabiá, ouço espantado
a dedicatória que o Pedro Nunes fez para minha prima Bibinha: Boneca cobiçada.
Devo
esclarecer aos mais novos que, por essa época, ainda não havia a famosa MPB –
Música Popular Brasileira, como nosso cancioneiro popular viria a ser conhecido
a partir do final dos anos 60, com a revolução estética trazida pela Bossa Nova,
ainda incipiente, e a Tropicália, ainda em gestação. Nossas canções mais
difundidas eram sambas-canções e boleros, este de origem cubana, em que a
temática amorosa falava de amores quase impossíveis entre o “poeta” e sua musa,
a maior parte das vezes, uma personagem de vida airosa, como no caso de Boneca cobiçada.
Minha
prima Bibinha era uma jovem tímida, simples, recatada, estudiosa, que morava em
outro lugar e estava passando férias em Carabuçu. Como fosse uma moça muito
bonita, certamente que despertou o interesse do Pedro Nunes. E ele não
pestanejou: ofereceu a música, no meu julgamento de garoto atento, errada. E
Narck Pontes propagou em ondas sonoras:
-
Pedro Nunes oferece à senhorita Alba – Esse é o nome da minha prima. –, como prova de muita admiração e carinho, o bolero Boneca cobiçada, de Biá e Bolinha, na interpretação de Carlos
Galhardo.
E
Carlos Galhardo soltou a voz, amplificada pela aparelhagem sonora, cantando os
versos a seguir:
Quando eu te conheci
Do amor desiludida
Fiz tudo e consegui
Dar vida à tua vida
Dois meses de aventura
O nosso amor viveu
Dois meses com ternura
Beijei os lábios teus
Porém eu já
sabia
Que perto
estava o fim
Pois tu não
conseguias
Viver só
para mim
Eu poderei
morrer
Mas os meus
versos não
Minha voz
hás de ouvir
Ferindo o
coração
Boneca
cobiçada
Nas noites
de sereno
Teu corpo
não tem dono
Teus lábios
têm veneno
Se queres
que eu sofra
É grande o
teu engano
Pois olha
nos meus olhos
Vê que não estou chorando.
Naquela noite, percebi que
nem sempre se acerta ao tentar conquistar o coração de uma mulher. No meu
entender, Pedro escolheu a música imprópria. Nem sei como minha prima reagiu a
isso. Lembro-me, contudo, que não ouvi nenhuma dedicatória de volta. Na minha
percepção, fez-se o tal silêncio que Lulu Santos viria a cantar décadas depois.
E sem sinfonia nenhuma!
Imagem colhida em amlece.blogspot.com.br. |
Beleza de memória,meu caro!
ResponderExcluirObrigado, Padilha!
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