(Publicado orginalmente em Gritos&Bochichos, em 6/6/2010.)
LADO
A
Despachou o marido para
a cidade dos pés juntos e partiu para a esbórnia. Antes, porém, doou as roupas
do falecido para a caridade. Nas suas, pôs fogo e enterrou as cinzas no
quintal. Comprou guarda-roupa novo, cheio de balangandãs, cheio de penduricalhos.
Fez corte picado no cabelo. Mulher que faz corte picado no cabelo é um perigo,
causa mais devastação que vento encanado, pensou de si para consigo. Que me
aguardem! – concluiu o pensamento libertário.
Teve de aguentar aquele
traste por vinte anos. Mão-de-vaca escolado, deu uma vida de mesquinharias, de
folhas de alface e carne-seca ponta-de-agulha. Quando comia melhor, era aquele
frango de padaria, com a farofa de brinde, nas ocasiões em que o padeiro
resolvia fazer promoção. O agora defunto chegava com bafo de cerveja, alegava
estar sem fome e ia dormir até a hora do jogo na televisão. Quando muito, ele se
agarrava a uns livros velhos, sebentos. Se tivesse posto vidro moído no feijão,
pode ser que tivesse abreviado a sensaboria de sua vida.
Nos últimos dois anos,
após um insulto cerebral que o deixou meio adernado para o lado direito, voz
estropiada, olho zambeta, suportou sobremaneira as agruras do inferno
matrimonial. Nem dinheiro tinha para contratar ajudante que amenizasse sua
trabalheira. E como dar banho naquele monte de banha repulsivo?
Depois que o miserável
morreu, descobriu uma poupança polpuda na Caixa Econômica, que lhe foi passada
por ser única herdeira, e com ela saiu fazendo visões e aparências modernas.
Então era um tal de saia curta, roupa colorida, batom carmim, chapéus de abas
larguíssimas. Até o andar ela modificou. Andava como se estivesse em passarela
de desfile da Casa Masson.
Ainda rondavam sua
memória as palavras ofensivas que endereçara ao finado, ao lado do caixão, para
dar fechamento àquela relação mixuruca, mas que morto nenhum gostaria de ouvir.
E tudo na segunda pessoa, tal qual letra de samba-canção:
- Vai-te, sovina
miserento! Infernizaste minha vida desde o fim da lua-de-mel. Contigo comi o
pão que o diabo amassou e só não desencarnei porque me apeguei a São Jorge, que
é muito mais forte que tu.
Na missa de sétimo dia,
encomendada a fim de não fazerem desabonações dela, já chegou com rapaz alugado
a peso de trufa branca de terras de Itália, com o qual foi posteriormente tomar
vinho do Porto Adriano Ramos Pinto em restaurante da Zona Sul. Era a vida que
pedira a Deus. Quem mandou morrer, papudo?
LADO B
Foi abotoar o paletó
logo no momento em que estava com dinheiro bastante para mandar a megera embora
e engatilhar possibilidades com menina nova, fornida em carnes, de perna
roliça, anca inchada. Isso era o que queria. No entanto estava ali,
estendido num caixãozinho muito mixuruca, que a viúva lhe comprara. Mas o que
fazer? Escondera o dinheiro de tal maneira, que a mulher ficou sem caixa para
lhe dar um pijama de madeira mais ostentoso.
Impotente, de canela
espichada, ainda teve de aturar, sem retrucar, cada palavra que ela lhe
dirigia, em tom de sussurro, como se recitasse letra de samba-canção. Mas pode
esperar, isso não vai ficar assim, não é mesmo? Neste ínterim, ficou
decepcionado, porque descobriu que não viraria fantasma, nem alma penada, para
atazanar o juízo da desinfeliz. Seu invólucro carnal era totalmente desprovido
de visagem. Que maçada! – ainda pensou em forma de texto machadiano, de que
tanto gostava. Era oco, totalmente oco!
E imaginar que juntara
todo aquele dinheiro às escondidas, para que ela não virasse uma zinha
qualquer, frequentadora de Casa Sloper. E a comida que ela fazia? Nem na pensão
de dona Preciosa comia tão mal em seus tempos de solteiro. Deu sorte de que ela
não tenha posto vidro moído no feijão, senão era capaz de já ter morrido há
mais tempo. Também de que adiantou morrer mais tarde, já que morreu antes dela?
De nada serviram os trabalhos de um pai-de-santo da Pavuna com o frango de
padaria que, às vezes, levava para casa. Nesses dias, nunca almoçava. Dizia que
tinha comido, no botequim, pão com salame acompanhado de filas de cerveja. E
como cozinhava mal: nem carne-seca sabia fazer, a coisa mais fácil do mundo
para ficar boa!
Ainda foi ter aquele
maldito derrame que lhe deixou metade do corpo paralisado, a fala desnorteada e
o olho embaciado. Então é que pôde sentir quem era ela. Mas também não tinha
mais como reagir. Às vezes ficava uma semana sem um bom banho, só com pano
molhado pelo corpo, como se fosse um velho assoalho de tábuas, onde não se joga
água para lavar.
Agora, estirado ali
naquele caixãozinho furreca, rodeado de flores tristes, pôde enfim ter o último
desejo permitido a um morto: que ela arranjasse moço novo, cheio de espertezas,
e lhe torrasse até o último centavo da caderneta da Caixa, para ficar só com a
pensão do INSS. Bem feito, doidivanas!
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