Da memória que guardo das coisas da minha terrinha natal, do tempo em que era seu morador em tempo integral, um dos sabores mais gostosos que provei foi o da linguagem do povo.
Algumas das formas características de lá, na verdade, pertencem a um fundo linguístico geral, trazido para cá pelos portugueses – mais a contribuição africana e indígena – e podem ser encontradas em outros locais, como já tive oportunidade de observar.
Em todo caso, trago para sua curiosidade mais algumas delas, em continuação à crônica anterior.
O povo lá de Carabuçu, antiga vila de Santo Antônio da Liberdade, sempre foi trabalhador, batalhador da vida: a maioria vivia das lides da roça; alguns outros, do pequeno comércio e do serviço da vila. Apesar da luta de todos eles, ninguém lá lutava, senão em disputas físicas assemelhadas a brigas. Todos eles pelejavam. E pelejar era dito de uma forma que revelava um fardo pesado a se suportar.
- E aí, seu Antônio, como vai?
- Pelejando, pelejando!
E aquilo parecia um trabalho de Sísifo.
Já o substantivo peleja identificava um tipo de cobertor rústico, usado pelas famílias pobres para os dias de frio. Se a peleja era mais curta que o usuário, virava bicicleta, por semelhança ao movimento de pedalar: puxar para cobrir a cabeça, espichar para tapar os pés. O que era um desespero nas noites mais frias. E o próprio cobertor era chamado de coberta.
Havia um homem com uma risada engraçada, que lembrava o barulho de um cobertor velho sendo rasgado. Seu apelido: Coberta Velha.
Toalha de banho é enxugador; ferro de passar, engomador; alfinete de fralda, vagabundo; grampo de cabelo, misse, que, inclusive aparece registrado na bela canção de Elomar, O pidido*, gravada no álbum Das barrancas do Rio Gavião, de 1972.
Quando alguém, por algum motivo, não cumpria o que lhe cabia e deixava algo sem solução, dizia-se – não sei se ainda existe tal expressão – “fulano cagou na retranca”. Cagar na retranca equivale hoje a deixar furo. Também se dizia, quando não se quisesse lançar mão de expressão tão chula, “fulano roeu a corda”.
E houve um termo com uso extremamente frequente na década de 60, quando apareceu: puaia. Puaia é o elogio falso, com o intuito de zombar do outro, sem que ele perceba. Deste modo, quando alguém fazia isso com o outro, dizia-se que ele estava dando puaia. Se acaso o outro acreditasse naquilo, dizia-se, então, que ele estava comendo puaia. Os dicionários Aurélio e Caldas Aulete grafam a forma poaia (palavra que veio do tupi pu’aya), um tipo de raiz medicinal também conhecida por ipecacuanha.
A prática de dar puaia se difundiu tanto, sobretudo entre os jovens, que as pessoas ficaram atentas a qualquer tipo de elogio, que era sempre tomado por falso e, portanto, inaceitável, para que evitassem o constrangimento de comer puaia. Apesar disto, havia sempre os incautos que caíam neste tipo de pegadinha.
Ao pequeno canal rústico, rasgado na terra, para conduzir água, dava-se o nome de banqueta. E havia nas fazendas do tio Aurélio e de seu irmão Pequetito, limítrofes uma da outra, um sistema de banquetas que levava água para mover o dínamo a carvão, que produzia energia elétrica à noite, o engenho de cana de dia, para a produção de melado, rapadura e açúcar mascavo, que lá chamávamos de açúcar batido. Com frequência, aliás, algumas pessoas trocavam o gênero do substantivo açúcar e diziam açúcar batida. Nesta mesma linha, havia a expressão açúcar macaca, que era o açúcar que os trabalhadores das usinas de Santa Isabel e Santa Maria, próximas à vila, recebiam como parte de seus salários e que tinham de vender a comerciantes, a fim de apurar algum valor em espécie.
Vejam que, no caso da açúcar macaca como pagamento, o salário foi totalmente desvirtuado de sua origem. Deveria ser, então, chamado de açucarário.
Havia, entre as crianças e entre os membros de uma família, uma brincadeira singela. Quando se chupava uma laranja (ou qualquer outra fruta com sementes) e vinham caroços à boca, aquele que os tinha desafiava a que o outro adivinhasse quantos eles eram:
- Gorgulho! – dizia o da boca cheia.
- Eu entro! – respondia o desafiado.
- Com quantos? – indagava o detentor dos caroços.
- Com cinco! – e estava feita a aposta, que poderia ser de qualquer coisa sem nenhum valor monetário.
Então o que desafiava começava a cuspir um a um os caroços, seguidos da contagem:
- Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito! Perdeu!
As laranjas-limas de nossa terra, por vezes, tinham mais caroços do que caldo.
Adivinhe o leitor amigo quantos mais Diz-se na minha terra tenho na minha cabeça para postar aqui.
Está feita a aposta!
Imagem em pandag.com.br. |
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* Se quiser ouvir a canção, clique no link: http://www.youtube.com/watch?v=1m_233GsseM .
Quem canta sua terra encanta o mundo. Que venham mais reminiscências desse alpendre gracioso e bem cuidado da memória.
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