Mas isto era coisa do passado.
Hoje, na área de lazer que equipara com uma tevê
com tocador de dvd, uma cadeira de praia e um ventilador de teto, no térreo do
seu saudoso clube Tupi, não entendeu bem por que voltou tanto no tempo.
Certamente não era por causa da combinação de cerveja com vinho tinto, que
misturava aos poucos e já o havia deixado um tanto mareado no meio daquela
tarde calorenta. Talvez fosse pelo show de Zeca Pagodinho, que via agora e que
o levou subliminarmente à imagem do sambista em seu quadriciclo percorrendo as
ruas de Xerém, a prestar socorro às vítimas da enchente há pouco ocorrida.
E lhe voltou de assalto a imagem do cabo
Jararaca.
Cabo Jararaca era o feroz subdelegado de Bom Jesus
do Norte, num tempo em que a polícia capixaba tinha fama de durona. E ele fazia
questão de demonstrar isto todos os dias, até mesmo com solicitações
estapafúrdias:
- Moleque, vai pegar uma dose de pinga no bar do
Osmar e diz que é a mando do subdelegado.
Mas, por outro lado, também tinha o coração
amanteigado por Dona Lindona, filha de seu Lalau, moça bem apessoada, cheia de
boas prendas e outras tantas reentrâncias e murundus salientes, que enfeitava
com sua beleza o guichê de passagens da estação do trem. Contudo, Dona Lindona
estava com compromissos acorrentados com um certo Deraldo da padaria, e repeliu
com firmeza todas as pretensões caboclas que cabo Jararaca lhe despejava nos
mimosos ouvidos.
Toninho calibrou novo copo de cerveja com vinho
tinto - Zeca Pagodinho pedia para que a vida o levasse a algum lugar - e
escorregou ainda mais nas lembranças daquele tempo. Cristina, sua amiga e
ouvinte atenta, estava curiosa para saber o desfecho da paixão do meganha.
Pois o cabo Jararaca não aceitou a rejeição pacificamente.
Mulher não rejeita a corte de um polícia graduado como ele! Ruim como era,
mandou seus dois soldados trazerem o noivo de Dona Lindona, Deraldo Santana,
com padaria e tudo, algemado e preso até a delegacia, localizada exatamente no
local onde hoje se ergue a casa dos pais de Cristina.
E providenciou para que a estada dele, padeiro,
fosse a pior possível. O próprio cabo deu uma sova de gurumbumba em Deraldo, de
mover osso do lugar, de magoar a carne com pisões arroxeados. O noivo apanhou
mais que pão sovado.
Dona Lindona perdeu o viço, até pareceu ter
murchado seus murundus, ao saber dos maus tratos sofridos pelo amado.
Cabo Jararaca estava com o alvará dos capetas e,
quanto mais sabia do sofrimento da noiva, mais descia o peso da lei no lombo do
padeiro.
Mas eis que São Pedro se apiedou daquela vítima
inocente e mandou a grande enchente de 1943 do Rio Itabapoana, que acabou
inundando a rua da delegacia, a pracinha e os trilhos da maria-fumaça.
O prisioneiro foi retirado da cela, para que não
se afogasse, e, no tumulto da enchente que pôs abaixo a velha construção, fugiu
para casa, aonde chegou todo estropiado.
Dona Lindona e a sogra começaram a tratar do
pobre coitado, enquanto seu Lalau chamava seus outros dois filhos, com as
recomendações de praxe, exigidas pela ocasião.
Munido cada um com seu porrete de pau-roxo,
saíram os irmãos à caça do cabo de polícia, por entre barro e lama, chuva e
inundação. Até que o pegaram quase entrando em casa.
Sem tempo de reagir, o cabo Jararaca começou a
virar minhoca, a poder de porretadas. Foi tanta cacetada por todos os
quadrantes da sua pessoa, que ele acabou em ponto de pão de ló, chegando quase
a brevidade, de tão esmigalhado. O que sobrou do valente cabo da gloriosa
polícia espírito-santense foi atirado às águas barrentas do Itabapoana e boiou,
em forma de cadáver inchado com os olhos comidos de peixe, num emaranhado de
gigogas, num remanso do rio na altura de Ponte do José Carlos, que futuramente
passaria a se chamar Iuru, a fim de
fazer jus ao tamanho do seu aglomerado de casas.
- E Dona Lindona, Toninho? - quis saber
Cristina.
- Curou as pancadas do noivo e se casou com ele
meses depois. Embora fosse uma moça muito bonita e cortejada, gostava
sinceramente do padeiro.
- E a minha casa quando foi construída?
E a memória do Toninho, que viajava no vaivém do
tempo, foi precisa:
- 1945. Eu já tinha meus quinze anos e podia
circular à vontade, sem o cabo Jararaca a me amedrontar.
Pôs mais um traçado de cerveja com vinho tinto
no copo, reclamou do calorão daquela hora do dia e afogou com um gole generoso
as lembranças de um tempo e de duas personagens que ainda teimavam em vir à
tona.
Naquele instante, as letrinhas indicavam os
créditos finais do dvd de Zeca Pagodinho. E a vida veio trazida na enxurrada do
tempo até aquela área de lazer do Toninho do Tupi.
Imagem em pt.wikipedia.com. |
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